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27 de nov. de 2011

[Conto] RUBEM FONSECA – Passeio Noturno

Rubem Fonseca

                por Pedro Luso de Carvalho


        Antes de transcrevermos o conto Passeio noturno, vejamos o que dizia a crítica sobre Rubem Fonseca na época de sua publicação pela Editora Globo, em 1974.

         Considerado um mestre da moderna ficção brasileira (“um dos seus contos é dos melhores da literatura iniversal” – disse Wilson Martins), estreou em 1963 com Os prisioneiros, livro que já traduzia profundo rompimento com a tradição, principalmente quanto à forma; em 1965, publicou A coleira do cão e, em 1969, Lúcia McCartney, tido como “o mais importante livro de ficção brasileira dos últimos anos” (Sérgio Sant'Anna) e “como a mais notável obra literária brasileira desde Guimarães Rosa” (Francisco de Assis Barbosa); ainda em 1969, venceu o II Concurso Nacional de Contos do Paraná; em 1973, lançou seu primeiro romance, O Caso Morel.

        Dizia, ainda, a crítica, em 1974: a obra de Rubem Fonseca é forte nos temas e sobressai pela funcionalidade da linguagem. “Quase aliterário, ele consegue aproximar-se da verdade sem adornos, tocá-la e exprimi-la em sua manifestação mais crua” (Hélio Póvora). Para Laís Corrêa de Araújo, o texto de Rubem Fonseca “torna palpável a contudência da vida, o insólito, o grosseiro, o erótico, o cínico, o ambicioso e o angustiado que somos. Sua sintaxe é, assim, de golpes, assumindo uma tonalidade cáustica e uma tensão muscular quase patética”.

        José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, e mora desde os seis anos no Rio de Janeiro.

        A seguir, a transcrição de Passeio noturno, de Rubem Fonseca, um dos contos que compõem o livro Os melhores contos brasileiros de 1973, Porto Alegre, Editora Globo, 1974, p. 179-181:



[ESPAÇO DO CONTO]

PASSEIO NOTURNO


(Rubem Fonseca)


       
       Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa-de-cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando empostação de voz, a música quadrafônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala? Perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

        Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

       A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescidos, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

       Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

        Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu e botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico, Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na Avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher?, realmente não fazia grande diferênça, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mail fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som das borrachas dos pneus batendo no meio-fio. Pequei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em onze segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de vermelho, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

        Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

       A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia. 


                                                                              * * * * * *

6 comentários:

  1. Pedro,

    Nem me fala do Rubem Fonseca! Sou fã dele há anos. Ele influenciou muitos autores atuais, alguns bem premiados, como a Patrícia Melo. Aliás, a Patrícia tem uma pegada semelhante, mas com personalidade. Não é cópia, é influência.

    Vc, que já leu muitas das porcarias que escrevo, sabe que nos contos também sofro a influência deste mestre!

    Ah, já te disse isso mil vezes, mas repito: Ariosto Augusto de Oliveira, eis um escritor que foi influenciado pelo RF, mas que tomou rumos próprios... Desistiu da literatura, pelos motivos que já discutimos.

    Influenciado pelo RF, reitero, mas assim como a Patrícia, tudo com muita personalidade. Compre no sebo o já quase raro: "Na Mão Grande". Uma grande artista que se perdeu.

    Abço!!

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  2. Cesar,

    É verdade, Rubens Fonseca vem influenciando muitos escritores que se dedicam ao ao romance e ao conto. E por que não dizer na crônica, já que nela ele também é fera?!

    Voce apenas não disse o que pensa desse conto do Rubem Fonseca, "Passeio Noturno".

    Vou seguir o seu conselho: vou procurar "Na Mão Grande", de Patrícia Melo (romance, conto ou crônica?); o mesmo vou fazer com Ariosto Augusto de Oliveira, já que não conheço nenhum deles.

    Depois que ler suas obras, trocaremos ideias.

    Para encerrar, Cesar, não concordo quando você diz: "Vc, que já leu muitas das porcarias que escrevo"; ao contrário, tanto que aconselho a leitura do seu livro de contos "O Homem Suprimido" - os leitores encontrarão aqui no blog VEREDAS um dos contos que integram a sua obra.

    Um abraço,
    Pedro.

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  3. Pedro,

    Esse conto, Passeio Noturno, tem além deste, mais um, que se chama Passeio Noturno 2. Os dois contos estão no livro os 100 melhores Contos Brasileiros do Século. Lá, além destes, do RF tem também o Feliz Ano Novo, um conto brutal, o reflexo do mundo-cão em que vivemos, onde a vida humana não vale nada. Não preciso dizer que eu adoro essa literatura. Não pela briutalidade gratuita, pois acho que a brutalidade gratuita é quando isso ocorre no mundo real. Gosto porque a brutalidade da ficção, recriando a verdade bruta, levanta a bandeira do absurdo. Lendo Feliz Ano Novo, Passeio Noturno e tantos outros contos do RF, ficamos mais sensíveis para conseguir enxergar a barbárie como uma deformação, não como uma coisa normal, como costumamos ver, graças à letargia (anestesia) em que vivemos.

    Isso, compre um da Patrícia que vc vai gostar. Recomendo: Ladrão de Cadáveres - romance. Muito bom. O reflexo da mente das pessoas simples, que, de repente, se envolvem com o lado mau da vida.

    Do Ariosto compre um destes (ou todos - tenho todos):

    Na Mão Grande
    A Noite do galo Doido
    Comandante Gravata
    Seis Ficções á Deriva

    Leia esta entrevista:

    http://www.nankin.com.br/imprensa/Materias_jornais/Seis-ficcoes-entrevista.htm

    Ah, desculpe-me por exceder neste comentário, mas aproveito para te dar o nome certo do livro do Roniwalter Jatobá, outro que te recomendo: "Crônicas da Vida Operária". Um livro de contos que desnuda a vida do trabalhador brasileiro. A forma, eis o segredo do Roniwalter.

    Chega!

    Abço grande!
    Cesar

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  4. Cesar,

    O conto "Noturno" e "Noturno2" também estão na excelente edição da Companhia Das Letras: "63 contos de Rubem Fonseca".

    Pena que este livro esteja com sua edição esgotada. Quem não adquiriu a obra terá de contar com uma nova reimpressão.

    Um abraço,
    Pedro.

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  5. Conto incrível. Não conhecia Rubem Fonseca. Gosto muito desse tipo de literatura, dessa brutalidade escrita. Nos faz pensar até onde o ser humano pode chegar, quais os nossos limites. Sou escritor (amador), e gosto de escrever contos assim. Obrigado por compartilhar!

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    1. Marlon,

      Rubem Fonseca é um dos nossos ficcionistas modernos mais importantes; seus romances e seus contos são muito bons.

      Um abraço,
      Pedro.

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Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho