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27 de fev. de 2012

[Conto] MACHADO DE ASSIS – Um Dístico

Machado de Assis

               por Pedro Luso de Carvalho


       MACHADO DE ASSIS (Joaquim Maria Machado de Assis) tem um lugar especial na literatura brasileira, como diz Álvaro Lins; e mais: “Atingiu no conto a perfeição de forma e de concepção”.

        Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, onde faleceu, no dia 29 de setembro de 1908. Seu sepultamento deu-se no Cemitério São João Batista, com grandes homenagens, oficial e pública. 
       
        Segue o conto Um Dístico, de Machado de Assis (MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Contos Sem Data. Organização e prefácio de R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966, p. 238-240). 


                                      

                                            UM DÍSTICO
                                                                                              (Machado de Assis)


        Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.

        Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na rua de São José, entre onze horas e meio dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.

        A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos; cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho – o pedinte era um velho – mostrou em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.

        Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia 0bsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da platéia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances durante anos eternos.

        Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:

        Le matin catholique et le soir idolâtre,
        Il dine de l'eglise et soupe du théâtre.

        Rí-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho . O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.

        É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, “Le matin catholique”, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Memo: “et le soir idolâtre”.

        Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.

        Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã: “'Le matin catholique”. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram um ou dois mil réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor e fossem três mil réis, ao todo; ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos, questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.

        Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: “Para a missa...”

        Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dísstico: “Il dine l'église et soupe du théâtre”.

        De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes na mão, grave, calado, e sem remorsos.  


                                                                 * * *

                                                                           MACHADO DE ASSIS.

        In “A Quinzena”, de Vassouras, nº 7, 1º de junho de 1886.


                                                            * * * * * *

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Pedro Luso de Carvalho