>

10 de set. de 2010

[Conto] DOIS INGRESSOS – João Gilberto Noll


                   
                      por  Pedro Luso de Carvalho


        João Gilberto Noll nasceu em 1946 na cidade de Porto Alegre (RS). Cursou Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, deixando de concluí-lo. Em 1969 mudou-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar como jornalista, primeiro no jornal “Última Hora”, depoia na “Folha de São Paulo. O seu primeiro conto foi publicado na antologia “Roda de Fogo”, em 1970. Em 1971 transferiu sua residencia para São Paulo; aí trabalhou como revisor da Cia. Editora Nacional. Retorna ao Rio e à “Ultima Hora”, onde escreveu sobre teatro, literatura e música. Retornou ao seu cruso de Letras em 1974; no ano seguinte passa a lecionar no Curso de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Após concluir o curso de Letras, em 1980, publicou seu primeiro livro, “O cego e a dançarina”. Recebe os Prêmios “Revelação do Ano”, da Associação Paulista de Críticos de Arte, “Ficção do Ano”, do Instituto Nacional do Livro e o “Prêmio Jabuti”, da Câmara Brasileira do Livro. Recebeu vários prêmios internacionais; suas obras foram publicadas na Inglaterra. Foi bolsista e professor convidado na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos.


        Outras obras de João Gilberto Noll: A fúria do corpoBandoleirosRastros de verãoHotel Atlântico, O quieto animal da esquinaHarmada (Prêmio Jaboti), A céu aberto (Prêmio Jaboti), Contos e romances reunidosCanoas e marolasBerkeley em BellagioMínimos múltiplos comuns.

O conto que segue,  Dois ingressos, de João Gilberto Noll, foi publicado pela revista Cult 47, ano IV]:
                                                 

                                                     DOIS INGRESSOS
                                                                                                             (João Gilberto Noll)

         “Dois ingressos”, pedi me abaixando um pouco, espiando as tristes feições que me atendiam. Sabia que eu estava absolutamente sozinho, mas não me contive, repeti: “Dois ingressos”. Na verdade não me importava com o filme em cartaz. Apenas deixei que o vento batesse no que me restava de cabelo, e fiquei ali, esperando que a moça me entregasse os bilhetes para o filme sobre o qual eu nem vagamente ouvira falar. Uma criança, claro, me puxava pela calça para que eu comprasse suas pastilhas de hortelã. Dizem que na eternidade todas as coisas vão se conectar umas às outras sem que nenhuma pese demais, ou seja, sem que nada chame muito a atenção sobre si para que tudo possa se encadear indefinidamente, um papo assim. Pois foi nisso que fui pensar no momento em que aguardava os bilhetes. A criança vendedora de pastilhas já não estava por ali.

        Entrei. Dormi. Acordei com o filme pelo meio. Dois corpos se beijavam dentro de um carro. Depois uma batalha esquisita entrava. Numa época anterior à possibilidade histórica de um carro. Depois... depois uma sombra azeitonada cochichava ao meu ouvido um torvelinho de sílabas com uma fenda voraz em certo trecho de toda a confusão; cochichava o que não sou doido de reproduzir, pois venho desenhando em mim um homem com a mania férrea de se manter na mansidão do que pensa aparentar. Mas...mas em que ponto mesmo eu ia tocar?

        Ah, precisava dormir um pouco mais. A música na tela era um tanto militar, como se saísse de um tranco de guerra, de algo que de sonífero tinha apenas um instrumento calado, constantemente a postos, preparado para entrar...

         Aliás, o que eu queria era mesmo uma pausa momentânea diante de tanta erupção sem a guarda dos fatos... Compreende ou prefere se afastar? Mas espera!, espera... O que eu queria era voltar a antes da sessão, eu com as mãos sobre o mármore frio da bilheteria, pedindo calmamente dois ingressos, em plena vigência de uma sesta impossível, com aquela baboseira sobre o rigor da eternidade na cabeça, lembro... Duas, duas e meia da tarde... Ah, não sei porque volto ao plano inicial na calçada, em frente ao orifício por onde a mão passava com o dinheiro e voltava com as entradas; só sei, vocês verão, que não tenho aonde chegar – é isso...

        Então me levantei, fui ao banheiro do cinema. Exatamente assim: me levantei, fui ao banheiro do cinema, justamente nessa ordem quase demencial ao panorama da hora, e soube pelo espelho que eu caçoava de mim. Língua, dentes orelhas, tudo, tudo já não se continha em si, já expunha um outro mundo onde criaturas como ele... ele, ele sim, que se olhava no espelho de um cinema sujo e malcheiroso, esse que nunca ninguém mais viu, inclusive eu, se eu ainda fosse um pronome utilizável aqui onde já nem me encontro – mas calma!, pois eu dizia... dizia que inclusive eu de fato nunca mais vira aquele homem que se olhava no espelho do banheiro do cinema, a reparar que toda aquela massa orgânica até então coesa já caçoava irremediavelmente de sua própria pele, de seu próprio desconsolo até, uma vez que o tal desconsolo já não tinha realidade que o pudesse sustentar, sustentar para na primeira oportunidade poder eliminá-lo num afago quem sabe, num beijo de morte talvez, enfim!, deixa pra lá...

         “Dois ingressos”, repeti. “Dois ingressos”, murmurei o mantra esfarrapado saindo do cinema – ali, bem ali naquela esquina onde eu já não podia entrar...


                                                                      *  *  *

2 comentários:

  1. O Noll tem um estilo muito próprio e peculiar. Seus personagens são geralmente ativados por uma ação frenética e muitas vezes (aparentemente) desconexa. A loucura e o aparente contra-senso brotam surpreendentemente em suas histórias, frutos de uma narrativa quase vomitada pelo fluxo dos acontecimentos e pensamentos do personagem. O texto de Noll, para ser compreendido, pede uma avaliação além da superfície da letra.

    Obrigado, Pedro, por este excelente conto.

    Abço
    Cesar

    ResponderExcluir
  2. Cesar,

    Concordo com a sua análise sobre a escrita do João Gilberto Noll. Suas apreciações são próprias de quem também conhece a difícil arte do conto. Parabéns.

    Um abraço,
    Pedro.

    ResponderExcluir

Logo seu comentário será publicado,
muito obrigado pela sua leitura e comentário.
Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho