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19 de nov. de 2011

[Conto] GRAZIA DELEDDA - A Minha Amiga


                          
                 – P EDRO LUSO DE CARVALHO

        A romancista italiana Grazia Deledda, cujo nome completo era Maria Grazia Cosima Deledda, nasceu na província de Nuoro, na região da Sardenha, a 27 de setembro de 1871, e morreu em Roma, a 15 de agosto de 1936. Foi a penúltima de seis filhos, de uma família rica. Seu pai, John Anthony, foi um rico empresário, proprietário de terras e prefeito de Nuoro em 1892; foi poeta e improvisador. Sua mãe, Francesca Cambosu, foi muito religiosa, e criou seus filhos com retidão e moral extrema. 

       Grazia Deledda foi escritora e tradutora. Começou a escrever aos dezesseis anos. Para os seus conterrâneos, pessoas simples e rudes, o fato de uma mulher escrever romances constituia-se em inadimissível mau exemplo. Livrou-se dessa pressão social ao mudar-se para Roma, onde passou a viver com o marido e os filhos, sem deixar que o sucesso obtido com sua obra mudasse seus hábitos simples.

         Grazia Deledda recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1927.

        Escreveu mais de trinta livros, e, embora célebre no seu país e no exterior, manteve-se distanciada dos meios literários para dedicar-se à família. Destacam-se, entre os romances mais conhecidos: Canne al Vento, Il Vecchio della Montagna, Cenere, L'Edera, Marianna Sirca e La Madre

        O conto A Minha amiga, que segue, é do volume Cedro del Libano. Esse conto também integra o livro: Contos Escolhidos. Os Melhores Contos da Literatura Universal. Seleção de Ricardo Ramos. São Paulo: Editora Três, 1976, p. 5-11:


[ESPAÇO DO CONTO]


A MINHA AMIGA
(Grazia Deledda)



        A minha primeira e única amiga chamava-se Brancaflor, e foi a primeira e única pessoa no mundo que eu invejei cordialmente. O pai era médico, mas era também um estudioso de literatura, daí talvez o nome de sua filha única. A mãe, uma nobre decaída mas autêntica, de antiga origem espanhola, nunca saía de casa, mais branca, fria e taciturna do que uma freira de clausura. E também ela, Brancaflor, crescia com o seu nome, como crescem as flores com o seu e não outro. Assim a rosa é a rosa, o junquilho é o junquilho. Brancaflor tinha o palor diáfano da gardênia, coroado pelo negro-azeviche dos cabelos lisos e brilhantes. Também os olhos eram escuros, mas daquele escuro meridional, lampejantes de sol, com as sobrancelhas que se mantêm negras até a mais tardia velhice.

        A casa do doutor era nova e bela, com cortinas de renda na janela, o escritório com grandes vidraças e, em volta, um jardim pequeno mas colorido por flores raras. Plantas de jasmim revestiam a amurada, os caminhos estavam cobertos por saibros finos e preciosos trazidos de uma praia distante. Uma árvore exótica, nada menos que a da pimenta, sombrava com as suas franjas de seda um banquinho de mármore pardacento que parecia de terracota. Do teto da sala de jantar pendia , tal como uma lâmpada, uma gaiola redonda e dourada, com dois canarinhos. Tudo naquela casa me era extraodinário, porque nossa casa era velha e nua, a família numerosa e rude, a horta cheia de repolhos e urtigas. No quintal de terra revirada pelas galinhas, havia um tronco onde nos sentávamos. Em meio à cozinha, uma antiga lareira dos tempos homéricos e o quarto de hóspedes que, quando não tínhamos hóspedes, servia para receber as visitas, na maioria das vezes cônegos da catedral e suas cândidas irmãs.

       Também nós tínhamos, só na cozinha, uma grande gaiola que parecia uma capoeira com uma velha ¹ghiandaia cinzenta, pelada e insolente. É verdade que conhecia um por um os habitantes da casa e também os vizinhos, e chamava-os pelo nome, com uma estranha voz que parecia vir de um mundo distante, do mundo fabuloso onde também os animais falam e são inteligentes e filósofos, até mais que alguns homens do nosso mundo. Estes homens haviam cortado a ponta de suas asas e ela ficou sem o azul que recordava as colinas do bosque onde nascera. [¹ghiandaia, pássaro existente na Itália, da família dos corvos.]

      Por outro lado, ela parecia zombar de todos, especialmente da patroazinha que se envergonhava da esperta prisioneira, pensando nos gentis e estúpidos canarinhos da sua amiga.

        A amizade nasceu na escola, nos bancos da segunda série elementar e, aos poucos, foi crescendo justamente pela atração dos contrastes. Brancaflor: bonita, bem vestida, sempre acompanhada por uma empregada já idosa que arremedava a fria austeridade da nobre patroa. No entanto, apesar do exemplo e da biblioteca do pai, a sua não era uma grande inteligência. Eu a atordoava com as minhas invenções: por ser a primeira da classe, pela suave zombaria com as coisas e pessoas que lhe diziam respeito, vingando-me assim da inveja que me causava. Aliás esse instinto, feito mais de humorismo que de ironia, era comum a toda a nossa raça pastoril, pobre mas orgulhosa, selvagem mas inteligente: é o sal que tempera o pão dos humildes. E assim eu ia à casa e ao jardim de Brancaflor como a um pequeno paraíso que eu jamais possuiria. As tulipas, as azaléias, as rosas brancas, a árvore de pimenta; a gaiola de ouro com os passarinhos dourados; as vidraças que refletiam, como fantasias lacustres, o céu e as sebes de jasmim; o vestido rosa da minha amiga, seus colares de coral, tudo isso me deixava, depois destas visitas, com o gosto amargo das festas gozadas na casa dos outros. A horta com os repolhos, o tronco que servia de assento, a lareira fumacenta, tudo me humilhava e me irritava e, acima de tudo, a ghiandaia sempre vigilante e curiosa, que me chamava com a primeira sílaba do meu nome e parecia adivinhar e rir dos meus sentimentos.

        Depois houve a tragédia dos cachorros. Como alguns miseráveis ladrões tentassem escalar o muro do jardim, o pai de Brancaflor arranjou um grande e lindo pastor alemão, sempre agitado como um mar em tempestade. Ficava amarrado junto à porteira do jardim, enchendo aquele lugar tranquilo com verdadeiros rugidos, e a gente ia vê-lo como se fosse um leão na jaula. Então senti vergonha também do nosso negro Maomé, um manso vira-lata, cuja razão de existir ninguém nunca entendera. Era velho e humilde, amigo de todos, até dos ladrões. De fato, quando nos roubaram galinhas, não deu o menor aviso. Além de tudo, tinha medo até de gatos. Na vizinhança todos riam dele, diziam que lhe havíamos posto uma dentadura. Até a 'ghiandaia' troçava dele. E, para completar, começaram a chegar alguns versos anônimos, compostos especialmente contra ele, que eram verdadeiros libelos. O pobre animal era insultado, caluniado, ironizado, e até ameaçado de ser laçado e reduzido a salchichas. Naturalmente era uma brincadeira de mau gosto e talvez Maomé lambesse as mãos do seu covarde poeta, mas tudo isso me deixava humilhada, com raiva, e então, de acordo com minhas irmãs, decidimos cometer um crime. Brancaflor foi nossa cúmplice: por sugestão minha, retirou um paozinho venenoso do armário de medicamentos de seu pai. Maomé tomou-o misturado com um bolinho de carne que eu mesma lhe dei com estas mãos, enquanto ele sacudia a cauda alegremente, olhando-me com uns olhos que nunca mais esqueci. Depois começou a tremer, correu a esconder-se na sua toca e morreu estoicamente, sem um só lamento. Foi aí que desandamos a chorar, eu e minhas irmãs, e nunca se viu lágrimas de crocodilo que fossem tão sinceras.

        E no entanto Brancaflor e a sua amiga tiveram sortes muito diferentes. Ela ficou na sua bela casa, com os seus canarinhos, as tulipas, os jasmins, a empregada fiel, enquanto eu subia a escada da vida, com todos os diversos degraus, ora de mármore brilhante, ora de pedra áspera e corrosiva. Não me faltaram o amor, a maternidade, a riqueza, a fama, a vaidade mundana, como também não me faltaram a dor, a doença, o desengano. Em certas horas, quando me parece falhar um degrau, caído ninguém sabe como, e pelo vão avisto um vazio ameaçador como se fosse uma armadilha, aí eu me sento sobre o degrau ainda livre, de costas para o perigo, e olho a estrada já feita me perguntando se não teria sido melhor não a ter percorrido. Então recordo a casa nua e primitiva, o canto de uma parede branca onde tinham ficado as marcas impressas por mim na juventude, como linhas de um termômetro que marcasse a febre de meus sonhos. O tronco que servia de assento, o pássaro que falava, Brancaflor no seu jardim de tulipas e jasmins.

        Brancaflor não se movera do seu mundo tal como uma figura, ainda que bela e viva, não se move do quadro onde foi pintada. Ela era da minha idade, mas demonstrava ter sempre quinze anos. Agora estava sozinha, com a velha e fiel empregada que parecia ser também uma figura do quadro, destinada a ali viver sempre. Gente da aldeia às vezes me trazia notícias suas, notícias sempre iguais mas boas. Não se sabia se alguma vez Brancaflor tivera uma paixão, uma dor, uma doença. Como os povos felizes, não tinha história. Não escrevia nunca, não mandava lembranças, talvez até mesmo tivesse se esquecido do passado e da amiga, assim como a gente se esquece de um objeto perdido que não se espera mais encontar. A escada da sua vida era o banco de mármore, que não subia nem descia e, principalmente, não apresentava perigos além de uma súbita chuvarada da qual sempre se podia proteger. As suas mãos sempre jovens de dedos intactos, que não se gastavam assim como as velas que nunca se acendem, só trabalhavam fazendo tricô para as crianças pobres. É verdade que as crianças pobres não deviam esquentar-se muito, porque ela não punha muito calor no que fazia.

        Com tudo isso a sua velha amiga ainda a invejava, mais do que se Brancaflor tivesse transcorrido uma vida de movimento, de luxo, de paixões satisfeitas, de ambições realizadas. Do alto do seu degrau, a amiga, lá de cima, via o panorama do seu passado como sob a luz inefavelmente triste de um luminoso crepúsculo de maio. As rosas da manhã desfolhadas, a noite que se aproximava sem o mistério dos sonhos, antes com o sorriso duro da realidade de um outro dia passado em vão.

        E então, entre uma vaidade e outra, com o vazio atrás e tendo à frente a visão das coisas perdidas, antes a vida imóvel de Brancaflor. Ela, ao menos, não se lamenta de nada. Como uma criança, morta nos seus primeiros anos, ela permanece sempre criança, inocente e pura. Os seus sonhos estão intactos, os homens são para ela sempre bons, as flores e as estrelas são sempre flores e estrelas.

        Mas uma vez chegou a Roma, em peregrinação, a sua empregada. Estava muito velha, parecia que vinha de tempos e de aldeias primitivas, até sua voz era distante, de um mundo mítico, como o da ghiandaia. E foi com aquela voz que disse: 

         - A minha patroa morreu no começo de maio. Não tinha nada, morreu assim, como que de langor. E agora posso fazer-lhe uma confidência: durante toda a sua vida, não fez mais do que invejar a sua primeira e única amiga.



                                                                     *  *  *
                     

6 comentários:

  1. Salutari din Ploiesti Romania:)

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    1. Muito bom receber tua visita, Maria Antonietta.
      Desejo a você um ano de 2014, com saúde e paz.
      Abraços.

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  3. Obrigada pelo conto traduzido em Português!! Eu estava procurando algo sobre Grazia Deledda para uma amiga barsileira....^_^
    Saudações da Itália!!!

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    1. Agradeço à amiga italiana pela visita.
      Quanto a Grazia Deledda. achei que não poderia deixar de postar esse seu belo conto.
      Um abraço.

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muito obrigado pela sua leitura e comentário.
Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho