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17 de jul. de 2012

[Conto] DALTON TREVISAN / Às Três da Manhã



  por Pedro Luso de Carvalho


DALTON TREVISAN foi um dos escritores brasileiros que, no início dos anos 60, passaram a adotar o conto para contar suas histórias; nessa época, que marcou uma revolução na produção desse gênero literário, também se destacaram: Rubem Fonseca, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.

Na introdução de Os cem melhores contos brasileiros do século, o crítico literário Italo Moriconi disse que foi há cerca de cinco décadas que o conto se formatou em uma narrativa de no máximo 20 a 25 páginas, deixando para trás a histórias mais longas e caudalosas, que são classificadas como novelas.

O professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Sergius Gonzaga, diz no seu livro, Curso de Literatura Brasileira (Porto Alegre: Leitura, XXI, 2004, p.28), que, “Nos primórdios do século XIX, o conto voltou a ter enorme aceitação junto ao público, perdendo em popularidade apenas para o romance”. Gonzaga diz, adiante, que “No século XX o conto continuou sendo uma das formas narrativas mais estimada pelo público”. Menciona os nomes de escritores estrangeiros mais importantes do conto nesse século, dentre eles, “o russo Isaac Babel, a neozelandesa Katherine Mansfield, o norte-americano Ernest Hemingway, os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e os brasileiros Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, apenas para citar alguns dos maiores nomes”.

Segue o conto de Dalton Trevisan, Às três da manhã, um dos trinta contos que integram o livro Novelas nada exemplares (In Trevisan, Dalton. Às três da manhã. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira 1965, p. 117-119):


                                    [ESPAÇO DO CONTO]

                                                   ÀS TRÊS DA MANHÃ
                                                                 (Dalton Trevisan)


Ela borda sob a luz amarela do abajur. Se pudesse aquela noite acabar o trabalho... Cerram-se os olhos, cansados, a mulher sabe que não poderá dormir. No quente círculo de luz sente-se protegida – ouve o seu nome chamado pelos retratos na parede. São retratos de mortos e as suas vozes ressoam numa casa onde todos dormem. Já passara a roupa, escolhera o arroz, ao lado do fogão apagado, e enchera o filtro de água. E, quando as vozes se calam, escuta o lento pingar das gotas do filtro.

Fechadas as janelas, a garrafa de leite diante da porta. Esta noite quem sabe ela dormirá. Guarda a agulha e os fios na cestinha; ergue-se, a sombra atrás dela, apagando as lâmpadas da sala e do corredor. Antes de extinguir a luz do quarto, acende a lamparina sobre a cômoda: a última luz do mundo.

Reza de joelhos, as mãos no rosto, e deita-se no canto da enorme cama de casal. A essa hora em que descaminhos andam sumidos o marido e os filhos? Suspende de vez em quando a cabeça no travesseiro para olhar o copo iluminado. É luz tão fraca e se, na penumbra do quarto, ela tivesse uma sombra, não se acharia tão só... Percebe uns dedos à janela: o galho do pessegueiro que, com o vento, ali bate de leve. Como se o pessegueiro estivesse acordado e quisesse conversar com ela; tem dedos descarnados e caem-lhe as folhas, é inverno.

Quando se deita há passos na rua, apitos de trem ao longe e sente ainda numa das faces o calor do abajur. Levanta a cabeça do travesseiro – os seus olhos mantêm acesa a lamparina. Basta que durma (e sabe que vai dormir, de tão cansada) para que a chama se apague. O copo está cheio de azeite, o pavio é novo, mas a chama se apaga, assim que ela fecha os olhos. Pode ser o vento ou o marido, o ratinho ou a morte.

Acorda no meio da noite – três horas é a hora dos ladrões e que ladrão lhe rouba a sua luzinha? - ficou só na cama escura. Não há passos na calçada, não há vento, o pessegueiro recolheu os galhos. O marido dorme a seu lado, mas ficou só. Dormem em sossego, não os ouve e reza para que não estejam mortos nas camas. Nem sequer pode chamá-los... Era doença o simples bater apressado do coração? Tem tanto medo que se senta na cama, a mão na boca: Por favor, Senhor. Não agora, não no escuro!

O marido, quem sabe, soprara o lume, antes de se deitar. Ou fora o camondongo que afundara o pavio, para beber gulosamente o azeite? O mesmo bichinho que agora roía o forro: alguém mais está acordado no mundo. Rói, ratinho, é a súplica da mulher. Não direi nada ao meu marido. Você seria preso numa ratoeira, então eu ficaria só. Rói, meu ratinho. Rói, por favor...

Põe-se a escutar, além do ratinho, e lá na cozinha, as gotas de água pingando no filtro. Disparam as gotas cada vez mais depressa: é seu coração. Acima de todos os sons da noite repercute, mais alto, o coração. O bichinho para de roer e fica, orelhas em pé, assistindo a mulher morrer.

Ela sente que a crise tinha passado quando entende novamente o camondongo. Pode chorar, não há mais perigo. Que as lágrimas enxuguem por si – e ela fica, de olhos fechados, a espreita dos pardais do crepúsculo. Ergue-se da cama e vai, tateando a parede, até a cômoda. Riscando um fósforo depois de outro, acende a lamparina.

No criado mudo está o remédio, a colher e o copo de água. Depois que alumia a lamparina e toma suas gotas, nada pode fazer senão esperar os pardais, vigiando o clarão trêmulo do copo. Geme sem querer, pois o marido resmunga:
      
      – Você não para de gemer?

            Sinto uma dor no coração...

 Você com essas dores.

A voz chega-lhe de longe, fala de costas para ela.

 Queria que você passasse a mão nos meus cabelos...

O marido ouve: … “a mão nos meus cabelos”, e ressona.

Aquela noite estava salva: a luz brilhava no copo. O marido e os filhos dormiam. O galho do pessegueiro bateu à janela: Estou aqui, eu, bem desperto...

Ela precisava de mais um dia para concluir o trabalho. Era fácil dar os vestidos e os sapatos, quem havia de querer um pano bordado pela metade? Cabeceava, sentada na cama, o ratinho saciado não roía o forro, a água não gotejava no filtro, os pardais dormiam entre as folhas. Com o inverno caem as folhas do pessegueiro, os pardais hão de voar para longe. Se eles voarem, ó meu Deus, quem a despertará de sua morte?


                                                       * * *

2 comentários:

  1. Gosto demais de Dalton Trevisan, assim como muitos outros contistas que fizeram deste gênero uma forma saborosa de conhecer e experenciar várias facetas da VIDA!!!
    É sempre bom vir por aqui e ter contato com leitura de qualidade, Pedro.
    Confesso que ando faxinando minhas páginas e tenho deixado de seguir tantos espaços que nada acrescentam.
    Aqui é sempre um prazer passear.
    Um grande abraço

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muito obrigado pela sua leitura e comentário.
Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho