Ignácio de Loyola Brandão
por Pedro Luso de Carvalho
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO é escritor e jornalista. Nasceu na cidade de Araquara, SP, no ano de 1936. Na literatura, fez sua estréia com o livro de contos Depois do sol, publicado em 1965. O seu primeiro romance, Bebel que a cidade comeu, foi lançado em 1968.
A obra de Ignácio de Loyola Brandão conta com mais de duas dezenas de livros publicados, entre romances, livros de viagem (Cuba de Fidel e O verde violentou o muro), contos e infantis (O menino que não teve medo do medo e O homem que espalhou o deserto).
Em 1997, o escritor lançou Veia bailarina, livro no qual narra sua própria experiência com a doença que lhe acometeu, um aneurisma cerebral, colocando-o em risco de vida.
Muito ainda teríamos para falar sobre sobre Loyola Brandão, não apenas como ficcionista, mas também como cronista (no jornal O Estado de S. Paulo e O Tempo, de Minas Gerais), além de seu trabalho como diretor de redação da revista Vogue.
[ESPAÇO DO CONTO]
OS MÚSCULOS
(Loyola Brandão)
(...)
Os fatos
Todos os domingos, pela manhã, enquanto os outros homens se reuniam no bar da esquina, ou iam para a várzea, ele ficava no quintal, remexendo a terra. O quintal media 4 metros quadrados, o máximo que a administração do com junto residencial fornecia. Ali, ele tinha alface, beterraba e couve.
Naquela manhã, ao passar o rastelo sentiu alguma coisa prendendo os dentes da ferramenta. Forçou, era resistente. Abaixou-se e notou fios prateados que saíam da terra. Era arame, novo. Quando tinha revirado a terra para adubar, tinha cavado fundo sem encontrar nada. Além disso, arame velho estaria enferrujado. Tentou puxar o fio, estava bem preso. Buscou um alicate, conseguiu pouca coisa. Cavou. O arame penetrava na terra alguns metros. Cavou mais. Como é que tinham feito uma coisa dessas, da noite para o dia? Preocupado com a horta, parou a pesquisa. Regou um pouco as sementes, pensando se o arame não ia prejudicar a germinação.
No dia seguinte, levantou-se bem cedo, para observar. O arame tinha crescido. Nos três canteiros, havia brotos de dez centímetros de altura. Um araminho espigado, vivo, forte. Teria sido um pacote errado de sementes? Não, era loucura. Semente de arame?
À noite, o arame parecia estacionado. Também no dia seguinte. As semanas se passaram, as sementes de verdura não germinaram. Só o arame cresceu, espalhou. Havia brotos pelo quintal inteiro. A mulher reclamava, não podia estender roupas no varal, os arames espetavam.
Numa casa de semente, ele pediu um técnico. Demorou meses. Quando o técnico apareceu, o arame estava alto. Os arbustos se enrolavam uns nos outros. O técnico nunca tinha visto nada igual. Aconselhou que o homem plantasse varetas, junto a cada pé. Senão, a colheita ia ser difícil. “Mas quem é que quer colher arame?”, disse o homem. “Eu quero acabar com ele.” “Para isso não temos veneno”, garantiu o técnico. “Podemos matar saúvas, broca, pulgão, mil tipos de larvas, mas arame, não”, disse ele, anotando numa caderneta preta. “Arame, não. O senhor vai ter que escolher. E eu gostaria de saber como foi a safra.”
O arame se enrolou nas varetas e no fim de dois meses o homem pôde colher rolos e rolos de um tipo especial, de aço inoxidável. “Vai ter boa saída no mercado”, disseram os amigos.
Ele amontoou a safra num canto da sala. A mulher, reclamando. Principalmente quando ele não conseguiu vender nada, apesar de ter corrido todas as casas. Um mês depois, o arame crescia outra vez, no quintal.
Veio outra safra. Amontoada na sala. A mulher ameaçava: “Jogo tudo isso fora”. Não jogou. As safras se amontoavam. O arame era fértil, produzia mensalmente. A casa se encheu.
Na casa pequena, 50 metros quadrados, o máximo permitido, não havia lugar para estoque. O homem passou a distribuir pelo bairro, à tarde, quando largava o serviço. Estendeu a distribuição a toda cidade, de porta em porta. Ofereceu, pelos jornais. Fazendeiros mandavam buscar. Centenas de caminhões congestionavam a rua. O bairro não suportava. Fazia abaixo-assinados.
As prefeituras aceitaram, para cercar os municípios. O governo do estado também. E o governo federal consumiu a safra de meses. Até que chegou o dia em que o país estava cercado.
Cercas de dezoito fios, impenetráveis. As casas vendedoras de arame reclamaram. Abriram processos. Em seguida vieram os fiscais da prefeitura. Com notas e notificações.
E os impostos, disto e daquilo. O Ministério da Fazenda falando em saturação do mercado de exportação. Baixa no preço mundial. No quintal, o arame crescia, se enrolava. Os lixeiros se recuravam a levar os rolos, não havia onde colocar.
A prefeitura proibiu a fabricação. Ele disse que não podia, que o arame crescia sozinho. Os fiscais riram, nem quiseram ver. “Nada cresce sozinho”. Começaram a aplicar multas, e multas.
Multas por fabricação ilegal, por falta de registros, por venda sem nota. As casas do ramo (as boas) ganharam nos tribunais. Ele fazia concorrência desleal. Devia pagar indenizações. Notificações para cessar a produção. O preço do arame caiu a zero no mercado. O homem saía à noite, sozinho, para jogar arame pelos terrenos baldios, nos bairros mais distantes. A mulher nem queria saber. Queria o quintal, de volta.
O homem parou de colher o arame. Ele cresceu, se enroscou todo. Caiu para o lado do vizinho. Cresceu por todo lado, pegando nos muros e paredes das outras casas.
Os vizinhos reclamaram. O arame estragava as paredes. Era preciso intervenção da polícia. Ele cortou o arame. Chamou benzedeiras. Duas semanas depois, o arame crescia viçoso.
Crescia por baixo da casa. Subia como trepadeira. Aparecia na calçada. Rachava o asfalto. Certa manhã, ao sair para o quintal, o homem comprendeu. Com um cabo de vassoura forçou a passagem.
Foi penetrando através dos fios de arame. Eles cediam facilmente, eram novos ainda. E o homem se deixou envolver pela floresta de fios. Andando. Cada vez mais para o meio. Até um ponto em que era impossível voltar.
Estava perdido, e contente. Ali não o encontrariam. Os outros teriam medo de penetrar naquela floresta, onde à tarde o calor era sufocante, mas a noite era fresca e agradável. Também não morreria de fome.
Logo no primeiro dia, descobriu pequenos insetos prateados, de aspecto não repulsivo. Verificou também que os brotos novos de arame eram macios e delgados. Descobriu que no centro daquela floresta havia um tipo de arame grosso. E que ao pé deles havia bulbos de água. Percebeu que durante o dia o sol penetrando pela densa vegetação de fios inoxidáveis produzia reflexos, desenhos. O vento, agitando os arames, roçando uns nos outros, produzia sons.
Sons e formas que distrairiam Danilo na longa viagem que começava.
(Dentes ao sol, Rio de Janeiro, Editora Brasília/Rio, 1976.)
* * *
Pedro
ResponderExcluirEu havia lido esse precioso conto, mas nem me lembrava mais. Fico pensando quão rica é nossa literatura que ninguém lê.
E eu sempre com o mesmo assunto: os milhões de não-leitores que este país de BBB, Michel Teló e toda sorte de lixo que movem multidões, tem.
Abços
Cesar
Cesar,
ExcluirSempre haverá alguém lendo bons livros - romance, conto, crônica, poesia -, e que, aqui ou ali, dirá a um filho ou a um conhecido seu ter apreciado a leitura. Pode parecer pouco, mas é o suficiente para manter a literatura viva.
Um abraço,
Pedro.
Inácio esteve aqui em Fortaleza na Bienal do livro. É em dado momento, alguém fez referência a este conto. Ele disse que o arame era a ditadura. Mas, acredito que podemos ampliar. O arame pode ser o avanço de muitas correntes de alienação coletiva. Acredito eu.
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