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3 de dez. de 2010

[CONTO] MARK TWAIN - O Noivado Infeliz da Aurélia

        

        Os fatos que se seguem foram narrados numa carta que me escreveu uma jovem da bela cidade de San José.

        Devo esclarecer que não conheço, em absoluto, a signatária do referido documento, que se assina simplesmente Aurélia-Maria – provavelmente um pseudônimo.

        A pobre garota tem o coração transtornado pelos infortúnios que vem sofrendo. E sente-se tão perturbada pelos conselhos, uns diferentes dos outros, de amigos ignorantes e inimigos insidiosos, que não sabe o que faça mais para se ver livre da teia do destino, na qual parece encontrar-se presa para sempre.

        Nervosa, recorre a mim, suplicando-me que lhe dirija os meus conselhos, falando-me com uma eloquência extraordinária, que tocaria o coração de uma estátua.

        Ouçamos a sua triste história.

        Aurélia tinha dezesseis anos – diz ela – quando encontrou e amou, com todo o ardor de uma alma apaixonada, um rapaz de New Jersey, chamado Wilhamson Brockinridge Caruthers, quase sei anos mais velho que ela.

        Com o consentimento de seus pais, ficaram noivos, e durante um largo período tudo correu muito bem, como se os noivos estivessem imunizados contra os instantes de desgraça que sempre tocam à humanidade.

         Um dia, entretanto, a face da realidade transformou-se. O jovem Caruthers caiu de cama com varíola, e da espécie mais violenta e terrível. Quando ficou bom, tinha o rosto desfigurado, a pele marcada pelas bexigas. Já não era o mesmo, porque a sua beleza desapareceu para sempre.

         Aurélia pensou em romper logo o compromisso, mas, por uma questão de piedade para com o infeliz, limitou-se a transferir o casamento para depois, como que dando um oportunidade ao pobre rapaz.

        Acontece que na véspera do casamento, Caruthers, quando acompanhava com os olhos um balão que subia aos céus, caiu, distraído, num poço, e quebrou uma perna. Tiveram de amputá-la acima do joelho.

        Novamente Aurélia teve a intenção de acabar com o noivado e novamente o amor triunfou. O casamento foi transferido e ela deixou que o tempo corresse.

        Outra infelicidade aguardava o noivo caipora. Caruthers perdeu um braço quando de uma descarga imprevista de um canhão, numa festa cívica. Ainda na convalescença, três meses depois, teve o outro esmagado num prensa agrícola.

        O coração da pobre Aurélia foi horrivelmente machucado por essas verdadeiras calamidades. Era enorme a sua aflição, por ver seu jovem noivo abandoná-la pedaço por pedaço e imaginar que, com esse sistema de progressiva redação, com pouco nada mais restaria do rapaz. E doiá-lhe verificar que nada podia fazer por ele.

        Em seu desespero, coitada, como um negociante que teima num negócio e tem prejuízo regularmente, todos os dias, Aurélia sentia um grande e profundo arrependimento por não haver casado logo no início com Caruthers, antes que ele sofresse tão alarmante depreciação. Mas, encarando a situação com ânimo firme, resolveu por à prova, ainda uma vez, as lamentáveis disposições do seu noivo.

        Foi marcado o dia do casório e de novo turvou-se o céu com as nuvens da desilusão. É que Caruthers caiu doente com um acesso de erisipela e foi então que perdeu um dos olhos.

        Os pais e os amigos da moça, tendo em vista que a sua generosa obstinação já excedia os limites normais, novamente intervieram e insistiram para que se considerasse nulo o seu noivado.

        Aurélia chegou a hesitar, apesar da sua imensa bondade de sentimentos, porém respondeu a todos que, refletindo direito sobre o assunto, verificara que não tinha nenhuma razão de queixa contra o noivo.

        Foi transferida a data do casamento, e eis que Caruthers quebra a outra perna.

        Para a pobre noiva bem triste foi o dia em que, no hospital, viu os cirurgiões mandarem arrastar para um canto o saco que continha mais uma parte do corpo de seu amado.

         Aurélia sentiu uma emoção cruel, percebendo que mais um pedaço do homem que iria ser seu esposo ia desaparecer. Sentiu, sobretudo, que o campo de suas afeições mais puras diminuía a olhos vistos. Contudo, não atendeu aos rogos dos seus, quanto à anulação de seu compromisso, e só fez mesmo transferir o casamento.

        Enfim, poucos dias antes da data fixada, aconteceu outra desgraça. Foi o seguinte: durante o ano, os índios de Owen River arrancaram o couro cabeludo de um só homem e este homem foi Wilhamson Brockinridge Caruthers, de New Jersy.

         Ainda assim, o pobre-diabo fez-se transportar imediatamente para a casa de sua noiva, o coração transbordante de alegria, embora tivesse perdido os cabelos para sempre. Apesar de todo o seu desgosto, ainda deu graças a Deus por haver-se salvo, mesmo por esse preço exorbitante.

        A esta altura, Aurélia está indecisa quanto à atitude que deve tomar. Ainda ama o noivo – é o que ela me escreve em sua carta. O noivo ou o pedaço de noivo que lhe resta. Ama-o de todo o coração, porém sua família se opõe terminantemente ao casamento.

        Caruthers é pobre e não pode mais trabalhar. Por sua vez, Aurélia não tem o necessário para que possam viver os dois juntos, com relativo conforto.

        Que devo fazer? - eis o que ela me pergunta, numa indecisão cruel.

        Esta é, com efeito, uma questão delicada. Questão cuja resposta deve decidir sobre o destino de uma mulher e de um pedaço de homem.

        Estou certo de que seria assumir uma grande responsabilidade responder indo além de uma simples sugestão.

        Quanto custaria a reconstituição de um Caruthers completo? Se Aurélia tem algum recurso, deve comprar para o seu noivo mutilado umas pernas artificiais, um olho de vidro e uma cabeleira postiça, para torná-lo apresentável. Feito isto, seria conveniente que lhe desse um prazo improrrogável de noventa dias, ao final do qual, se o rapaz não torcer o pescoço, poderá arriscar-se a casar com ele.

        Não creio que assim procedendo Aurélia se aventure a grande risco, de qualquer maneira. Se Caruthers ainda uma vez cede à tentação estranha de quebrar alguma coisa sempre que se lhe apresenta a ocasião propícia, sua próxima experiência na certa será fatal, e então a pobre noiva poderá ficar tranquila, casada ou não. Casada, as pernas de pau e outros objetos, propriedade do defunto, ficarão como herança para a viúva, e assim Aurélia não perderá nada, a não ser, na realidade, o último pedaço vivo dum esposo honesto e infeliz, que durante a vida toda não fez outra coisa senão contentar os seus extraordinários instintos de autodestruição.

        É tentar a sorte, portanto. Refleti bastante sobre o assunto, e este me parece o melhor partido a tomar no caso.

        Decerto, Caruthers teria agido com acerto se houvesse tentado quebrar o pescoço logo da primeira vez, tratando de fazer coisa definitiva. Já que escolheu outro método, dispondo-se a prolongar o sacrifício o mais possível, não se pode criticá-lo, por haver feito o que lhe pareceu melhor. Deve-se é tirar o melhor proveito das circunstâncias, sem o menor ressentimento.


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         [O noivado infeliz da Aurélia, de Mark Twain, com tradução de Valdemar Cavalcanti, é um dos contos que compõem o livro Contos Norte-Americanos, Rio de Janeiro, Bup, 1963, p. 81- 84.]

        MARK TWAIN, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, o mais famoso escritor na primeira grande era comercial de seu país, tornar-se-ia um dos valores permanentes da literatura norte-americana. Nasceu na Flórida, Missouri, a 30 de novembro de 1835, e morreu em Reddinf, EUA, a 21 de abril de 1910. Twain, que criou personagens que ficaram muito populares, como Tom Sawyer e Huckleberry Finn, começou sua vida como aprendiz de tipógrafo e logo depois como jornalista, atividade que viria trocar pela de piloto de vapor fluvial, no Mississipi. Como esse serviço esse ficou suspenso temporariamente em razão da Guerra Civil, mudou-se para a cidade de Virginia, onde retornou ao jornalismo e adotou o pseudônimo Mark Twain, com o qual ficaria famoso. As visões políticas do escritor e as observações do quotidiano da sociedade de sua época estão inseridas em suas obras ficcionais, quase de forma imperceptível. E no que se relaciona aos problemas raciais dos Estados Unidos, tinha uma sólida posição progressista.

        Obras principais: [romances] The Gilded Age, 1873; As aventuras de Tom Sawyer, 1876; O príncipe e o mendigo, 1882; As aventuras de Huckleberry Finn, 1884; Um ianque na corte do rei Arthur, 1889; The Tragedy of Pudd'nhead Wilson, 1894; [contos] A célebre rã saltadora do condado de Cavaleras e outras histórias, 1867; O homem que corrompeu Hadleyburg, 1899; O diário de Adão e Eva, 1904; Captain Stormfield's Visite to Heaven, 1909; [não-ficção] Velhos tempos no Mississipe, 1883; Is Shakespeare Dead?, 1909; Autobiografia de Mark Twain, 1924, entre outros.


 

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Pedro Luso de Carvalho