UM HOMEM E SEU DESTINO
– PEDRO LUSO DE CARVALHO
Esta é a história de Juvenal Lima. Parte dela passou-se na época
em que o país vivia as agruras da Ditadura Vargas. Durante certo
período de sua adolescência, Juvenal passou ouvindo conversas entre
seus pais sobre Getúlio Vargas. O pai dizia que Getúlio era o
protetor dos trabalhadores, enquanto a mãe acusava-o de prender e
torturar intelectuais de respeito.
Foi nessa época que Juvenal viu-se obrigado a prestar serviço
militar. Depois de um ano de farda, voltou ao convívio dos civis.
Formou-se como técnico em contabilidade. Em pouco tempo já estava
empregado. Casou-se, e dois anos depois nasceu a primeira filha. Não
tardou, a mulher já estava outra vez grávida. A expectativa de
Juvenal era ter um filho homem. Nasceu mais uma menina.
O trabalho era duro, no escritório. Era um fazer lançamentos de
notas fiscais em livros contábeis que não tinha mais fim. Não era
sua natureza queixar-se. Quando Juvenal retornava do trabalho, era
mal recebido pela mulher, que estava sempre envolvida com as
crianças. Mãe e filhas pareciam formar um só corpo. Ele era apenas
um estorvo. Com o passar do tempo, mal suportava os fins de semana.
Esperava com ansiedade pela segunda-feira.
A vida de Juvenal Lima era desprovida de graça e de emoção. O seu
dia-a-dia era um eterno repetir-se. O tempo parecia ter estabelecido
uma rígida regra para ele: da casa para o trabalho, do trabalho para
a casa. A mulher exigia-lhe pronta obediência. Juvenal obedecia.
Quanto aos vizinhos, dividiam-se nos que tinham pena dele e nos que o
desprezavam.
– Olha lá o Juvenal correndo para a casa – dizia alguém.
– Coitado, vai de cabeça baixa, com medo de olhar para as
mulheres – comentava outro.
Por todos os motivos, a mulher e as filhas pouco significavam para
ele. Apenas dois prazeres davam sentido à sua vida: o trabalho e a
música. O tango e a milonga eram suas paixões. Durante o dia,
esquecia-se dos aborrecimentos fazendo os seus lançamentos
contábeis. À noite, em casa, fechava-se numa pequena sala para
ouvir rádios da Argentina e de Montevidéu. Gardel era o seu cantor
preferido. Encantava-se com a magia de Troilo ao bandoneon.
– Abaixe esse maldito rádio, homem dos infernos – gritava a
mulher.
Contrariado, mas sem contestar, Juvenal baixava o volume, e
aproximava-se bem do rádio para poder ouvir suas músicas.
– O jantar está servido – a mulher avisava. – Apague essa
porcaria de rádio, e não me faça esperar.
No dia seguinte, Juvenal caminhava rápido pela Avenida Borges de
Medeiros. Estava quase embaixo do viaduto quando um homem deu-lhe um
forte esbarrão, que o derrubou. Levantou-se um pouco atordoado. O
homem havia desaparecido. Desconfiado, levou a mão ao bolso do
paletó, quando se deu conta que a carteira havia sido roubada, com
seus documentos. Por sorte, guardava o dinheiro num bolso interno
da calça.
Sentia-se ainda um pouco tonto e com forte dor de cabeça. Decidiu-se
então não ir para o trabalho. Iria à tarde, e se justificaria ao
patrão. Depois de tomar um analgésico na farmácia, dirigiu-se à
Praça da Matriz, onde escolheu um banco embaixo de uma árvore e
sentou-se.
Já havia passado mais de duas horas quando resolveu almoçar, ali
perto. O restaurante estava cheio. Esperou um pouco até vagar uma
mesa. Pediu o prato do dia. Na mesa ao lado, um casal comentava o
noticiário da rádio. O homem disse à mulher que uma pessoa, de
nome Juvenal Lima, havia sido esmagada por um ônibus. Juvenal
estremeceu com o que ouviu.
Depois de ouvir a conversa do casal, Juvenal saiu do restaurante. Não
estava mais em condições de ir para o trabalho à tarde, como era
sua intenção. Desnorteado, voltou à Praça da Matriz, sentou-se
num banco e ali ficou por algum tempo.
– A mulher e as filhas já devem ter ouvido a notícia de minha
morte – disse para si mesmo, um tanto assustado.
Juvenal levou muito tempo para decidir que não iria dormir em casa.
"Vou ver se encontro um quarto naquele hotelzinho da Riachuelo",
decidiu-se.
Depois de tomar café, no hotel, Juvenal leu o jornal, que trazia na
sua primeira página a reportagem sobre a morte de Juvenal Lima. A
fotografia do homem esmagado embaixo do ônibus deu-lhe certa
euforia. Folheou o jornal para ver se encontrava mais alguma coisa
sobre o acidente, e viu, num canto de página, o convite para seu
enterro, feito pela mulher e pela firma da qual era empregado.
Naquele mesmo dia, Juvenal comprou passagem de ônibus para
Montevidéu. De lá foi de navio para Buenos Aires. Ficou paralisado
ante a beleza da metrópole, naquele entardecer. Em poucos minutos
estava no centro da cidade. Na Calle Florida, mulheres e
homens passeavam, elegantemente vestidos. Muitos deles entravam e
saiam de bares, cafés, restaurantes. Palavras eram insuficientes
para dizer tudo que sentia.
Com o passar do tempo, Juvenal não estranhou ter se integrado de
forma tão definitiva à vida da cidade. Falava com rara destreza o
espanhol. Nem parecia ser brasileiro. Mal se lembrava de sua chegada
em Buenos Aires, e do homem que falsificou sua nova identidade, a
mesma pessoa que lhe encaminhou para uma firma, que precisava de um
contabilista, onde foi admitido.
Aos poucos, Juvenal foi observando como se trajavam os portenhos,
principalmente aqueles que frequentavam casas de tango. Deixou para
trás o seu corte de cabelo, quase raspado. Com os cabelos já
crescidos pode penteá-los como faziam os dançarinos de tango,
dando-lhe ao rosto um ar de dramaticidade.
À noite, passou a frequentar as famosas casas de tango. Dançava tal
qual um bailarino profissional. Perdeu a timidez, e conversava com
desenvoltura. Conquistava as mulheres com extrema facilidade. Certa
noite, numa casa de espetáculos, excursionistas brasileiros olhavam,
em silêncio absoluto, um casal de dançarinos a deslizar pelo salão,
corpos unidos, a mulher entrelaçando suas longas pernas nas pernas
do homem.
– Gente, aquele dançarino não é o Juvenal Lima? – a
brasileira perguntou.
Todos os brasileiros, seus companheiros de excursão, riram muito
dela por dizer tamanha besteira.
– Coitado do falecido – disse outro excursionista.
Enquanto isso, no salão, Juvenal Lima
apresentava-se com sua formosa parceira, naquela dança impregnada de
paixão e dramaticidade, ao som de La
Cumparsita.
* * *
lindo conto.. achei perfeito..torci muito pelo Juvenal..ele mereceu ser feliz..parabéns..beijo
ResponderExcluirPedro, esse conto é fantástico. Nele se vê o que aconteceu ontem e o que acontecerá sempre. Vi essa tua história pelo seguinte ângulo: certas pessoas foram talhadas para serem mães e não esposas, companheiras, mulheres. E dessa forma, contada nesse conto, vê-se um desastre de união: união entre um homem e uma mulher - um fracasso de casamento.
ResponderExcluirO coitado do juvenal não tinha absolutamente nada mais do que sonhar. Era um intruso na relação familiar (?). Será familiar, se família não existia mais?
Essa guinada, aproveitando-se do roubo de sua documentação foi fantástica. Esse teu conto leva nós, leitores, a ler num fôlego! E que final feliz!!!
Teve a coragem para recomeçar, e ser feliz. Foi sempre impedido de sonhar – e com tão pouco: ouvindo em seu radio os tangos que faziam sua alma rodopiar de emoção.
Viva Juvenal Lima!
Beijinhos!
Linda historia. Gracias por compartirla.
ResponderExcluirUn abrazo
Meu querido amigo Pedro,
ResponderExcluirSou sua mais nova amiga virtual, prazer!
Sua alma de poeta cativou meu coração que vagueia pelos versos insanos...
Renascer das cinzas e eclodir para uma nova vida, é isso aí!
Me tornei sua seguidora.
Seu blog é divino!
Parabéns!
Beijos salpicados de estrelas e miosótis,
Martha
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terei muito prazer em receber vc!
Ou tente assim: coloque na busca do Google:
blog ternura antiga de Martha Marquez e depois me conte, ok?
..."– Abaixe esse maldito rádio, homem dos infernos, gritava a mulher..."
ResponderExcluirTenho esse problema aqui em casa rsrsrsss tira esse som maluco! Rock end roll hehehhe The who, Janis Joplim!
Mas gosto também Soled Pastorut, Antonio Marco Solis - Pitty, Raul Seixas etc.
abração volto!.
Excelente Pedro! Infelizmente muitos casamentos acabam assim, mesmo que não haja uma morte literalmente dita. A falta de companheirismo, respeito, e liberdade para que cada um viva a sua individualidade no sentido cultural,em busca de seus ideais e sonhos acaba frustrando e não há união que resista. Cada um precisa do seu próprio espaço, para crescer como pessoa, para que a vida não se torne monótona, e pesada. Enfim,como é maravilhoso ouvir boa música.
ResponderExcluirParabéns, gostei muito do conto.
Apesar de não conhece-los pessoalmente, aprecio muito o casal Tais e Pedro Luso.
Um grande abraço aos dois.
Agradeço, Lourdinha, pela Taís e por mim; sempre poderá surgir ocasião para nos conhecermos pessoalmente. A Taís manda um beijo para você.
ExcluirAbraço meu.
Pedro.
Na juventude me sinto como Juvenal, logo mais tarde Juvenal lima me fez lembra a ausência de meu pai ele esqueceu sua vida antiga e partiu sem rumo.
ResponderExcluirHe podido traducir el relato y creo no haber perdido el sentido que le quieres dar. Me ha parecido sorprendente y a la vez divertido, pero con un punto de amargura. El desenlace es perfecto. ¿Cuántas veces habríamos pensado algo así, cuando la vida no se comporta con nosotros como debería.? Juvenal lo entendió bien y lo hizo mejor.
ResponderExcluirUn abrazo
Oi amigo, vim lhe desejar um ótimo começo de semana, abraços e fique com Deus!!
ResponderExcluirOi Pedro,
ResponderExcluirAdorei o seu conto, Juvenal até que demorou muito para tomar uma decisão, eu como boa mineira já teria dado um fim logo nesse triste relacionamento.
Ainda bem que Juvenal pode sentir o gosto do seu viver.
E que viva Juvenais!kkk
Beijos
Minicontista
EXCELENTE RELATO. QUE TE ENGANCHA DESDE EL PRINCIPIO. UN PLACER LEERLO.
ResponderExcluirUN ABRAZO.
OI PEDRO!
ResponderExcluirSORTE DO JUVENAL, CONSEGUIU SE LIBERTAR E SER FELIZ, MESMO OS MEIOS NÃO SENDO OS MAIS CORRETOS, VALEU PARA ELE.
MUITO BOM, TEU CONTO.
ABRÇS
-
http://zilanicelia.blogspot.com.br/
Muito bom o seu conto, Pedro, mas, estarei torcendo para que o Juvenal não seja descoberto.
ResponderExcluirBeijos!
Ótimo este conto, o personagem conseguiu uma das coisas mais importantes da vida sua liberdade, a partir dai tudo correu como sonhou para si.
ResponderExcluirAbraço.
Léah
Olá Pedro,
ResponderExcluirUm conto excelente, muito bem escrito e envolvente.
Juvenal não soube se fazer respeitar e a mulher, por sua vez, também não soube conciliar seus papéis de mãe e companheira, desprezando o marido e seus interesses. Nenhuma relação sobrevive à indiferença, falta de respeito e a uma rotina massacrante e infeliz. Na verdade, ninguém merece viver num estado de infelicidade se tem a opção de escolher outro caminho. Juvenal nem precisava se utilizar de artifícios para fugir da situação. Acovardou-se ao se utilizar de meios nada convencionais para viver uma nova vida. Certo, porém, que a vida lhe apontou um caminho para ir em busca de sua realização e felicidade e ele aproveitou a oportunidade. Afinal, pelo que se extrai do conto, por descuido do destino, a vida de Juvenal estava acontecendo no lugar errado-rs.
Gostei muito da leitura e também de receber a sua amável visita.
Abraço.
Olá Pedro,
ResponderExcluirApreciei muito este seu conto, uma narrativa envolvente com a excelência
na descrição e a personagem principal, o"Juvenal" percorrendo pelo
drama até atingir a renovação, com o ganho de uma nova vida,
colorida pela fantasia de sonho cultivado no silêncio.
Grata pela sua visita e comentário atencioso no meu blog e
assim, me proporcionar conhecer o seu excelente espaço
literário (fiz algumas leituras nele) e com certeza voltarei.
Abraço de paz.
Amigo Pedro.
ResponderExcluirMe temo que tu protagonista va a quedar como un clásico al que rezarán más de cuatro maridos (y mujeres) maltratad@s, a ver si les pasa a ellos algo similar.
Saludos.
Caro Pedro Luso, não tenho a culpa, mas emocionei-me muito com a história de Juvenal Lima. Talvez por similitude. Porém uma coisa é certa, do modo que a história está bem contada, podemos ver aqui um aspeto das singularidades da grandeza da mente de certos homens.
ResponderExcluirAbraços
Eu sou das que teriam pena do Juvenal; são muito tristes os casamentos nos quais o nascimento dos filhos (neste caso, filhas), faz com o que casal se afaste de forme irremediável.
ResponderExcluirUma mulher que nem suporta que o marido ouça a sua música preferida depois do trabalho, só pode ser uma mulher insuportável!
O acaso deu contudo a ajuda para uma mudança de vida, tendo Juvenal acabado no lugar onde se sente como peixe na água.
Excelente conto, Pedro. Muito bem engendrado!
xx
Muy interesante historia y las circunstancias le liberaron de una vida espantosa. Me ha gustado mucho este relato porque justo es reconocerlo, mujeres odiosas también las hay. La violencia con la que castigan las mujeres suele ser con el uso de la lengua y el humillante mal trato del desprecio.
ResponderExcluirSaludos cordiales. Franziska
Fantástico Pedro, que bela trama e final feliz para o Juvenal oprimido e massacrado pela vida.
ResponderExcluirShow de criatividade.
Meu abraço