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21 de fev. de 2011

[Conto] HORACIO QUIROGA – O Travesseiro de Penas

          
               
                  por  Pedro Luso de Carvalho
                
       
         HORACIO QUIROGA nasceu em Salto, Uruguai, em 1878. Por muito anos, residiu na Argentina. Faleceu em Buenos Aires, em 1937. Escreveu, além de romances, cerca de duzentos contos, que foram publicados em revistas, no período que compreende os anos de 1907 a 1921. Foi o responsável pela modernização do gênero literário de narrativa curta castelhano (conto), cujo modelo retórico se impôs.
       
        O crítico literário Pablo Rocca faz a seguinte observação no seu posfácio para A Galinha Degolada, sobre o modelo retórico de Quiroga: “Trata-se do mesmo modelo que, em inglês, foi pensado e praticado por seus mestres Edgar Allan Poe ou Bret Harte: aquele que elimina os elementos acessórios do relato, sopesando o efeito e a potência expressiva de cada uma das palavras em espaço tão avaro (...)”.
      
        Esse conto, Travesseiro de Penas, de Horacio Quiroga, é um dos que compõem o livro A Galinha Degola e Outros Contos, seguido de Heroísmos  (Biografias exemplares), publicado pela L&PM POCKET, reimpressão em agosto de 2008 (1ª edição em outubro de 2002), com tradução de Sergio Faraco, p. 9-14.
                                       
                                     
                                                            [ESPAÇO DO CONTO]

                               
                                                    O TRAVESSEIRO DE PENAS
                                                                             (Horacio Quiroga)


       Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o temperamento sisudo do marido lhe gelou as sonhadas fantasias de noiva. E no entanto ela o amava muito, às vezes com um ligeiro estremecimento quando, à noite, voltando juntos para casa, dava uma furtiva olhadela à alta estatura de Jordán, que na última hora não pronunciara uma só palavra. Ele também a amava muito, profundamente, mas sobre isso não dizia nada.

      Durante os três meses – casaram-se em abril – viveram uma felicidade peculiar. Certamente ela teria desejado menos sobriedade nesse rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva e menos controlada. Mas o impassível semblante do marido sempre a refreava.

       A casa onde moravam também contribuía para seus calafrios. A brancura do pátio silencioso – frisos, colunas, estátuas de mármore – produzia a outonal impressão de uma palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem uma única e superficial fissura nas altas paredes, corroborava a desconfortável sensação de frio. Na passagem de uma peça para outra, os passos ecoavam por toda a casa, como se um longo abandono lhe tivesse aguçado a ressonância.

        Nesse singular ninho de amor, Alícia passou todo o outono. Lançara um véu sobre os antigos sonhos e vivia como dormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada até a hora em que chegasse o marido.

      Não surpreendia que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de influenza que acabou se arrastando, insidiosamente, por dias e dias. Não melhorava nunca. Num fim de tarde pôde ir ao jardim, apoiada no braço do marido. Olhava para um lado e outro, indiferente. Jordán, com ternura passou-lhe a mão na cabeça, e Alícia pôs-se a chorar, pendurada em seu pescoço. Chorou longamente todo seu espanto calado, redobrando o pranto à mínima carícia. Depois os soluços foram diminuindo e ela continuou abraçada nele, sem mover-se e sem nada dizer.

        Foi esse o último dia em que Alícia se levantou. No dia seguinte amanheceu prostrada. O médico de Jordán veio vê-la e recomendou repouso absoluto.

        Não sei o que ela tem – disse a Jordán em voz baixa, já na porta da rua.  É uma fraqueza que não entendo. Sem vômitos, sem nada... Se amanhã despertar como hoje, manda me chamar.

       No outro dia Alícia estava pior. Veio o médico e constatou uma anemia em progresso acelerado, completamente inexplicável.

        Alícia não teve mais desmaios, mas era visível que caminhava para o fim. Durante o dia todo o quarto permanecia com a luz acesa e em silêncio. Corriam as horas sem que se ouvisse o menor ruído. Ela dormitava.

        Jordán passava o dia na sala, também com todas as luzes acesas. Andava sem cessar de um lado para outro, com incansável obstinação, o carpete abafando-lhe os passos. De vez em quando entrava no quarto e continuava em seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um instante em cada extremo a olhar para a mulher.

        Em seguida Alícia começou a ter alucinações. A princípio eram confusas, variadas, depois se fixaram no chão do quarto. Com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa senão fitar o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, com o olhar fixo, abriu a boca para gritar, com as narinas e os lábios perlando suor.

         Jordán! Jordán! - clamou, por fim, rígida de espanto e sem deixar de vigiar o tapete.

        Jordán acudiu e Alícia, ao vê-lo, deu um grito.

         Sou eu, Alícia, sou eu!

        Ela olhou como perdida, logo para o tapete, tornou a olhar para o marido e, depois de um momento de de atônita confrontação, acalmou-se. Sorriu e, tomando entre as suas a mão de Jordán, acariciou-a por uma longa meia hora, sempre tremendo.

        Entre suas alucinações mais pertinazes, houve uma que era a de um antropóide no tapete, erguendo-se na ponta dos dedos e com o olhar cravado nela.

      Os médicos voltaram a examiná-la, sempre em vão. Era uma vida que se acabava, dia a dia se desangrando, hora a hora, sem que soubessem como e por que aquilo acontecia. Na última consulta, Alícia jazia em estupor enquanto lhe verificavam o pulso, um passando ao outro aquele braço inerte. Demoradamente a observaram em silêncio e depois passaram à sala.

         É um caso gravíssimo – e o médico de Jordán balançou a cabeça, desalentado.  Pouco ou nada se pode fazer.

         Era só o que faltava – desabafou Jordán, dedos tamborilando na mesa com violência.

       Alícia se esvaía em subdelírios de anemia. Nas primeiras horas da tarde seu mal se atenuava, agravando-se com a chegada da noite. A doença parecia não avançar durante o dia, mas no dia seguinte ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia mesmo que que tão-só durante a noite sua vida escorria em novas vagas de sangue. Ao despertar, tinha a sensação de estar esmagada na cama por um milhão de quilos. Desde o terceiro dia essa prostração não mais a abandonara. Mal podia mover a cabeça e não quis que trocassem os lençóis e a fronha. Seus terrores crepusculares avançavam agora sob a forma de monstros que se arrastavam até a cama e subiam laboriosamente pela colcha.

        Perdeu a consciência. Nos dois dias finais delirou sem cessar à meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, ouviam-se apenas o delírio monótono que vinha da cama e os surdos passos de Jordán.

       Alícia morreu por fim. A criada, entrando mais tarde no quarto para arrumar a cama vazia, olhou intrigada para o travesseiro.

         Senhor – chamou em voz baixa.  No travesseiro há manchas que parecem de sangue.

        Jordán aproximou-se rapidamente. De fato, na fronha, em ambos os lados da concavidade deixada pela cabeça de Alicia, viam-se manchas escuras.

         Parecem picadas – murmurou a criada, depois de um instante de atenta observação.

         Traz a lâmpada para cá.

        A criada levantou o travesseiro e logo o deixou cair, pálida, trêmula. Sem saber por quê, Jordán sentiu que seus cabelos se eriçavam.

         O que houve?  perguntou, rouco.

         Pesa muito – gaguejou a criada, sem deixar de tremer.

        Jordán o ergueu. Pesava demais. Levaram-no para a mesa da sala e ali Jordán cortou a fronha e o envoltório interno. As penas à superfície voaram, e a criada, com a boca escancarada, deu um grito de pavor, levando as mãos crispadas aos bandós. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso vivente e viscosa. Estava tão inchado que quase não se distinguia sua boca.

        Noite a noite, desde que Alicia ficara acamada, aplicara aquela boca – aquela tromba, melhor dito – às têmporas dela, para sugar-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A mudança diária da fronha havia impedido, a princípio, seu desenvolvimento, mas desde que a moça não pudera mais mover-se, a sucção fora vertiginosa. Em cinco dias e cinco noites ele esvaziara Alicia.

        Esses parasitas das aves, diminuto no meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece lhes ser especialmente favorável e não é raro que sejam encontrados em travesseiros de penas.


                                                         
                                                                  *  *  *
          

5 comentários:

  1. Pedro!

    Obrigada pela atenção, carinho e apoio que você e a Tais têm nos dado nesses últimos dias.

    A presença dos amigos na minha vida tem sido uma experiência fantástica de esperança e solidariedade.

    Independente do resultado, eu afirmo que valeu!

    Não tivemos a mesma atenção pela vasta maioria daqueles que tinham a obrigação de fazê-la, mas a voluntariedade dos amigos virtuais superou nossas expectativas de maneira confortante! Me parece que para cada porta que se fecha, abrem-se inúmeras janelas!

    Um grande abraço com toda minha admiração por vocês!
    Sueli Gallacci

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  2. Anônimo20:50

    Grazie della visita.

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  3. Adorei a postagem! Beijos na Tais!

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  4. Pedramigo

    Venho tarde, mas venho.

    A) Mais uma vez aprendo contigo, o que de novo te agradeço. Não conhecia Horacio Quiroga, mas passei a conhecê-lo. Assim, já li mais coisas dele e por isso só agora deixo o registo. E sabes como eu gosto das short stories, os nossos contos.

    B) Continuo envergonhadíssimérrimo por me teres incluido numa tão bela lista de escritores; donde, cada vez mais pense que esta ovelha negra que eu sou, quase deu cabo dela. Persisto, mesmo assim, na gratidão.

    Qjs à Tais e abç para tu (???)

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  5. Anônimo09:31

    Lindo conto
    GABRIEL RIBEIRO MIX

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muito obrigado pela sua leitura e comentário.
Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho