– PEDRO LUSO DE CARVALHO
RICARDO RAMOS (1929 –
1992), filho de um dos nomes mais importantes da literatura brasileira,
Graciliano Ramos, escreve sobre a cidade grande, retratando-a nos seus
problemas, na celeridade que a caracteriza, mostra, no seu âmago, um redemoinho
de paixões, injustiças e pressões, nas quais se consomem os que a habitam,
presos que vivem nas teias da sociedade de consumo.
Ricardo Ramos recebeu
muitos prêmios, dentre eles: Prêmio I
Academia Brasileira de Letras (conto e romance); o Prêmio Jaboti, que lhe foi concedido por três vezes; Prêmio da Câmara Brasileira do Livro
(conto, novela e romance); Prêmio
Guimarães Rosa, concedido pelo conjunto da obra do contista. Sobre o
trabalho de Recardo Ramos, diz Jorge Amado:
O ficcionista Ricardo Ramos é hoje um dos
melhores escritores que possuímos, num país de tantos gênios e tão poucos
escritores. Um escritor muito nosso, não apenas pelos temas, mas principalmente
pelo sentimento brasileiro.
Segue o conto O terceiro irmão, de Ricardo Ramos (In Os melhores contos
brasileiros de 1974/Ricardo Ramos. Porto Alegre: Editora Globo, 1975, p.
147-149):
[ESPAÇO DO CONTO]
O TERCEIRO IRMÃO
– Ricardo Ramos
O irmão mais velho tinha dez anos, fechou a janela e comentou
maravilhado:
– Deus é muito grande. Fazer o mundo, o sol, as estrelas. É uma coisa!
O irmão mais novo, dois anos mais moço, duvidou:
– E foi Deus quem fez?
O primeiro estava escandalizado, levantou a voz:
– Então não foi? Se não foi ele, quem é que fez?
O segundo continuou só respondendo:
– Ninguém, ora!
– Como ninguém?
– Já estava feito.
– Sem se fazer, nem nada?
– É, de nada.
– Você não acredita?
– Acreditar em quê?
– Você é uma besta.
O terceiro irmão, que só tinha um olho, entrou na discussão apaziguando:
– Esperem aí, não é tão simples. Desde o começo os homens se dividem. Os
que acreditam, os que não acreditam. Foi sempre assim.
Quando fez doze anos, o irmão mais velho ganhou uma bola e jogou
futebol. O irmão mais novo ganhou um livro e leu. Às vezes, um chamava o outro.
– Vamos jogar?
– Você não quer ler?
Nenhum dos dois aceitava. O mais novo calado, abanando a cabeça. O mais
velho se irritando:
– Você não sai, não corre, não faz exercícios.
– Pra quê. Não tenho vontade.
E continuava lendo. O outro xingava:
– Bicha!
Ele respondia, sem se alterar:
– É a mãe.
O terceiro irmão, que só tinha uma pena, comentava com certa alegria:
– Vocês são diferentes como dois irmãos.
Quando chegou aos quinze anos, o irmão mais velho aprendeu a dançar. O
irmão mais novo aprendeu a ouvir música. Um saía para os bailes de sábado, onde
fez do rock ao samba, e esticava as noites com chope e violão. O outro ficava
com os seus discos, o seu gravador, quieto e de olhos fechados, apenas mexia o
corpo num balanço quase de não se perceber. Com o tempo, o primeiro decorou
Chico, Edu e Lira, até cantava. O segundo estalava os dedos, sempre num ritmo
sem palavras.
– Como é que pode gostar disso?
Isso era o canto de protesto, com versos e instrumentos de fora,
estrangeiro feito um menino sozinho dentro de casa.
– Eu gosto.
– Eu sei. Há gosto pra tudo.
– É. Está aí você.
E brigavam, música pop, música popular brasileira, ambos com ar
superior, que podia ser mais agressivo, mais discreto, no entanto o mesmo tom
de fácil discordância.
– Você faz questão de ser original. Pendure um disco no pescoço.
– Você é o consumidor-modelo. Continue batucando os seus sambinhas.
O terceiro irmão, o que só tinha um ouvido, levantava as mãos e dizia:
– Somos todos irmãos, consumidores. Qual é mesmo a música desse verso?
Quando alcançou a maturidade, o irmão mais velho estava no fim do curso
científico e ia fazer medicina. O irmão mais novo se iniciava no clássico e
pensava em filosofia. O primeiro tinha uma namorada firme, o segundo tinha
muitas. Um se vestia com cuidado, acertava a barba quadrada, punha
água-de-colônia no lenço; o outro usava as mesmas calças desbotadas, os cabelos
despenteados e compridos, os óculos redondos. Nas refeições, o mais velho comia
muito e crescia, aumentava, forte e sólido, enquanto o mais novo nem tanto,
esquecido, alongado, meio frágil. Talvez por isso também discutissem:
– Quando eu for rico.
– O negro é bonito.
– A guerra acabou, ninguém pensa em ninguém.
– A luta não é minha, é de todos.
– O povo está conformado.
– Eu não sei, não vejo televisão.
O terceiro irmão, o que só tinha um lado, o do meio, perdia-se no
barulho, na fronteira, e já não sabia o que dizer.
O irmão mais velho saiu e foi denunciar o irmão mais moço.
O irmão mais moço foi condenado à morte por crime de opinião.
O terceiro irmão, o que só tinha uma vida, tomou o seu lugar diante do
pelotão de fuzilamento. As balas todas acertaram o alvo. Porque ele estava um
pouco maior. Não deixou bilhete nem última vontade.
E os irmãos sobreviventes continuaram, discordando, brigando, sorrindo,
até que a cidade escureceu, o país acabou, o mundo caiu, e um grande silêncio
voltou sobre todas as coisas.
*
REFERÊNCIAS:
RAMOS, Ricardo. Os amantes iluminados. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.RAMOS, Ricardo. Os melhores contos brasileiros de 1974. Porto Alegre: Editora Globo, 1975.
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Pedro Luso de Carvalho