Clarice Lispector |
por Pedro Luso de Carvalho
CLARICE LISPECTOR nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920, e morreu no Rio de Janeiro, no dia 9 de dezembro de 1977, aos 56 anos.
O conto O Jantar, de Clarice Lispector, que segue, integra o seu livro Laços de família, reeditado pela da José Olympio Editora, 1978, 9ª ed., págs. 87-94.
CLARICE LISPECTOR nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920, e morreu no Rio de Janeiro, no dia 9 de dezembro de 1977, aos 56 anos.
O J A N T A R
(Clarice Lispector)
Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros.
No momento em que eu levava o garfo à boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pão com vigor e mecanismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo e olhando. O garçom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho mantinha os olhos fechados. A um gesto mais vivo do criado, ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu. O garçom sussurrou palavras amáveis abaixando-se para apanhá-lo; ele não respondia. Porque, agora desperto,virava subitamente a carne de um lado e outro, examinava-a com veemência, a ponta da língua aparecendo – apalpava o bife com as costas do garfo, quase o cheirava, mexendo a boca de antemão, e começava a cortá-lo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo. Em breve levava um pedaço à certa altura do rosto e, como se tivesse que apanhá-lo em vôo, abocalhou-o num arrebatamento de cabeça. Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta, passando a língua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente.
E exatamente como se não suportasse mais – o quê? - pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas. Parei em guarda. Seu corpo respirava com dificuldade, crescia. Tira afinal o guardanapo da vista e olha entorpecido de muito longe. Respira abrindo e fechando desmesuradamente as pálpebras, limpa os olhos com cuidado e mastiga devagar o resto de comida ainda na boca.
Daqui a um segundo, porém, está refeito e duro, apanha uma garfada de salada com o corpo todo e come inclinado, o queixo ativo, o azeite umedecendo os lábios. Interrompe-se um instante, enxuga de novo os olhos, balança brevemente a cabeça – e nova garfada de alface com carne é apanhada no ar. Diz ao garçom que passa:
- Não é este o vinho que mandei trazer.
A voz que esperava dele: voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele. Senão obedecê-lo.
O garçom se afastou cortês com a garrafa na mão.
Mas eis que o velho se imobiliza de novo como se tivesse o peito contraído e barrado. Sua violenta potência sacode-se presa. Ele espera. Até que a fome parece assaltá-lo e ele recomeça a mastigar com apetite, de sobrancelhas franzidas. Eu é que já comia devagar, um pouco nauseado sem saber por quê, participando também não sabia de quê. De repente ei-lo a estremecer todo, levando o guardanapo aos olhos e apertando-os numa brutalidade que me enleva... Abandono com certa decisão o garfo no prato, eu próprio com um aperto insuportável na garganta, furioso, quebrado em submissão. Mas o velho demora pouco com o guardanapo nos olhos. Desta vez, quando tira sem pressa, as pupilas estão extremamente doces e cansadas, e antes dele enxugar-se – eu vi. Vi a lágrima.
Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmente consigo encará-lo do fundo de meu rosto pálido, vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais. As sobrancelhas grossas estavam juntas. A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pode continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guardanapo pela testa. Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais. Porém ele – ele comia.
O garçom trouxe a garrafa dentro de uma vasilha de gelo. Eu anotava tudo, já sem discriminar: a garrafa era outra, o criado de casaca, a luz aureolava a cabeça robusta de Plutão, que se movia agora com curiosidade, guloso e atento. Por um instante o garçom cobre minha visão do velho e vejo apenas as asas negras duma casaca: sobrevoando a mesa, vertia vinho vermelho na taça e aguardava de olhos quentes – porque lá estava seguramente um senhor de boas gorjetas, um desses velhos que ainda estão no centro do mundo e da força. O velho engrandecido tomou um gole com segurança, largou a taça e consultou com amargura o sabor na boca. Batia um lábio no outro, estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável. Eu esperava, o garçom esperava, ambos nos inclinávamos suspensos. Afinal, ele fez uma careta de aprovação. O criado curvou a cabeça luzente com sujeição ao agradecimento, saiu inclinado, e eu respirava com alívio.
Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu o espreitava em vão. Nada mais acontecia. O restaurante parecia irradiar-se com dupla força sob o tilintar dos vidros e talheres; na dura coroa brilhante da sala os murmúrios cresciam e se apaziguavam em vaga doce, a mulher do chapéu grande sorria de olhos entrefechados, tão magra e bela, o garçom derramava com lentidão o vinho no copo. Mas eis que ele faz um gesto.
Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensamento, diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como não se suportasse mais – larga o garfo no prato. Desta vez foste bem agarrado velho. Fica respirando, acabado, ruidoso. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e perigoso. A mulher magra cada vez mais bela estremece séria entre as luzes.
Ele terminou. Sua cara se esvazia de expressão. Fecha os olhos, distende os maxilares. Procuro aproveitar este momento em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe neste instante. Ele não quer.
Vem a sobremesa, um creme derretido, e eu me surpreendo pela decadência da escolha. Ele come devagar, tira uma colherada e espia o líquido pastoso escorrer. Ingere tudo, porém faz uma careta e, crescido, alimentado, afasta o prato. Então, já sem fome, o grande cavalo apóia a cabeça na mão. O primeiro sinal mais claro aparente. O velho comedor de crianças pensa nas suas profundezas. Com palidez vejo-o levar o guardanapo à boca. Imagino ouvir um soluço. Ambos permanecemos em silêncio no centro do salão. Talvez ele tivesse comido depressa demais. Porque, apesar de tudo, não perdeste a fome, hein!, instigava-o eu com ironia, cólera e exaustão. Mas ele se desmoronava a olhos vistos. Os traços agora caídos e dementes, ele balançava a cabeça de um lado para outro, de um lado para outro sem se conter mais, com a boca apertada, os olhos cerrados, embalando-se – o patriarca estava chorando por dentro. A ira me asfixiava. Vi-o botar os óculos e ficar mais velho muitos anos. Enquanto contava o troco, batia os dentes projetando o queixo para frente, entregando-se um instante à doçura da velhice. Eu mesmo, tão atento estivera a ele,que não o vira tirar o dinheiro para pagar, nem examinar a conta e não notara a volta do garçom com o troco.
Afinal tirou os óculos, bateu os dentes, enxugou os olhos fazendo caretas inúteis e penosas. Passou a mão quadrada pelos cabelos brancos, alisando-os com poder. Levantou-se segurando o bordo da mesa com as mãos vigorosas. E eis que, depois de liberto de um apoio, ele parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós. Sem que eu possa fazer nada, põe o chapéu acariciando a gravata ao espelho. Atravessa o aspecto luminoso do salão, desaparece.
Mas eu sou um homem ainda.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.
* * *
Pedramigo
ResponderExcluirJá me penitenciei perante a nossa querida Tais, agora repenitencio-me perante ti. Sou um bom malandro, eu sei, mas prometo emendar-me, o que não me parece muito credível. Mas, mesmo assim...
Clarice Lispector é uma enormíssima escritora, sou fã dela, tenho todos os seus livros publicados em Portugal. Lendo-a, para além do prazer que me dá, aprendo muito e sempre com ela.
A nossa Língua Portuguesa tem-na, natural e obviamente, no grupo dos eleitos. Este O Jantar é uma pequena maravilha, uma verdadeira obra prima.
Por isso te felicito uma vez mais pela excelente escolha que fizeste. Obrigado, Amigo
Abç
Só mesmo a Clarice para nos colocar de frente a "um real que adivinha", um real que cria, que penetra, que tem forma e não tem.
ResponderExcluir"De real só lhe restou a sagacidade, que o fizera dar um pulo para indistintamente se defender". (A maçã no Escuro); a psique humana no seu atributo, a consciência,esta pequena parte da mente,sendo que da consciência a maior parte é o inconsciente. Trabalha Clarice com o inconsciente a alma e a consciência, como Dostoiévski, mas de uma forma diferente ela vislumbra a precariedade da existência, mas de uma forma nem mórbida e nem doentia, mas simplesmente "sendo", apesar da fragilidade de "ser"e as mudanças, trocas e links que se utiliza a consciência.
Adoro Clarice Lispector.
ResponderExcluirAbraço
oa.s
Estou lendo Laços de família...fascinante...!!!
ResponderExcluirHoje estou andarilha neste espaço...bjs