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23 de nov. de 2010

[Crônica] FERNANDO CORONA / Dança Flamenca

       

        Não sei quantas vezes li o livro “España Virgen” - escreve Fernando Corona – do escritor norte-americano Waldo Frank. Ele, como a tantos outros aconteceu, ficou enfeitiçado pelo corpo, que é a terra e pela alma, que é o povo daquele país encantador. Corpo e alma que absorvem e fascinam qualquer estrangeiro que passe por ali. Que o digam Washington Irving, quando escreveu seus encantadores “Contos de Alhambra”, ou Rodrigues Larreta em “La Glória de Don Ramiro”, ou Ernest Hemingway em Por Quem os Sinos Dobram”. Como eles, outros escritores famosos lá viveram e escreveram sobre a luta, o encanto, o caráter, o fatalismo e a alegria de viver de um povo, de uma raça súmula de tantas, que parece nascer e crescer como nascem e crescem os robustos carvalhos de suas florestas montanhosas.

        Não sei a origem da palavra flamenco aplicada em Andaluzia mais que no resto da Espanha. Costumam dizer: - “Hoy estás muy flamenco”, quando a pessoa aparece disposta a expressar um desejo de intimismo. Eu diria apenas que ela se confunde com gitano, pois todo gitano é flamenco e todo flamenco é gitano. Seria um estado de espírito, graça, personalidade, malícia, astúcia, atitude e particularmente desejo. Nesta raça andaluza existe orgulho em ser gitano e o orgulho aumenta quando o gitano é flamenco. É alguma coisa que transcende pensamentos de divindade, superstição e crença. Nasce com a criatura por atavismo e conserva-se a vida toda como força espiritual. A dança flamenca é individual e espontânea no exercício do matriarcado, e foi a mulher que a sublimou, como expressão de dor e de alegria ao mesmo tempo, para distrair seu homem.

        Waldo Frank descreve a dança flamenca de modo admirável e é de sua forma literária que interpreto a meu modo, claro está que pobremente, o que ela significa. A dançarina flamenca é uma coluna articulada por uma alma. Plasticidade vivente em que funcionam todos os sentidos com a dádiva do olhar e as mão ondulantes. No corpo espigado repousa a cabeça em perfeito equilíbrio. Seus cabelos são negros e brilhantes como a mirada penetrante de seus olhos. Os braços redondos decoram a moldura magnífica dos firmes ombros. O corpo, torso de vestido ajustado, permanece ereto, enquanto os pés rodopiando, em passos curtos e cadenciados, as saias de longos panos desenham no espaço, pelo movimento ritmado, curvas parabólicas que se entrecruzam e formam contraste com a rigidez do corpo. Os braços flutuam languidamente, molemente sobre a cabeça e as castanholas repicam o seco comentário que acompanha o rasgado das guitarras. A bela e boa bailarina flamenca não é magra, pelo contrário, ela é robusta e larga de pélvis, ereto e forte o peito e angulosas e marcadas as formas do rosto moreno. Disse Waldo Frank que a “bailarina flamenca carece de erotismo sexual, e embora caída, é mais matrona que rameira”. Os vestidos que usa são belos de forma e de cor, fartamente pesados e completos, para despertar desejos e emoções. Esta mulher morena, flamenca e gitana, ao finalizar a dança, no momento exato de ouvir-se a última nota musical, transforma-se em estátua, levanta a cabeça e olha para o infinito como querendo dizer: “Esta soy yo”. Entretanto, ela é mãe, mestra e sacerdotisa, ela é a força e a chama permanente de muitos mundos antigos que assaltaram e povoaram a península. Ela é o espírito estratificado de milênios. A dança flamenca, dentre o folclore espanhol, riquíssimo, diferente em cada região, é a mais divulgada do mundo. Espanha é mais conhecida pelas touradas e pelo flamenquismo, mais que pela variada e multicolorida manifestação popular das demais regiões. Creio mesmo que isso nada importa, porque realmente em Andaluzia vive o povo mais extrovertido da península. Sua filosofia é de estar alegre em permanente estado de graça, como terapêutica saudável para si e para dar e vender. A dança flamenca, que é a dança gitana, é uma expressão soberana.


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        [A crônica acima, Dança Flamenca, compõe o livro de FERNANDO CORONA, que, sobre a obra, dizia “que são manchas de colorido plástico sentidas por um peregrino”: AMÊNDOAS E MEL - Crônicas de Espanha, Porto Alegre, Edição Sulina, 1969, págs. 75-77.]

        Fernando Corona nasceu em Santander, Espanha, a 26 de novembro de 1895, e morreu em Porto Alegre, RS, onde era radicado, no ano de 1979. Seu avô e seu pai eram arquitetos. Ele próprio foi arquiteto. Também foi escultor, ensaísta, crítico e professor de arte de origem espanhola. Chegou a Porto Alegre em 1912, onde seu pai o esperava. Corona diz que tudo o que sabe aprendeu nos livros e que sua universidade foi a rua. Em 1938 escreveu “Fídias - Miguel Ângelo - Rodin”, tese para à cátedra de Escultura e Modelagem do Instituto de Belas Artes, curso de que fundou e onde lecionou durante 30 anos. Foi colaborador das revistas Máscara, Kodak, Revista do Globo, e, a partir de 1944, passou a escrever para o jornal Correio do Povo.

        Obras principais de Fernando Corona: Casas da Cidade, 1940; Fisionomia de uma Cidade, 1940; O Sobrado no Rio grande do Sul, 1942; Imagem da Terra Gaúcha, 1942; Ismos, 1947; Características da Arquitetura Brasileira, 1954; Cem Anos de Formas Plásticas e seus Autores, 1956; Viagem dos Incas, 1956; 50 Anos de Artes Plásticas e seus Autores, 1957; Escultura do Século XIX na Europa, 1958; Miguel Ângelo, Escultor, 1964; Amêndoas e Mel, 1969.

 
  

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Pedro Luso de Carvalho