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31 de out. de 2010

[Conto] RICARDO RAMOS / Viva o Rei

       
             
               por  Pedro Luso de Carvalho


        Viva o rei é um dos contos que compõem o livro Os amantes iluminados,   de Ricardo Ramos, Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 51-53; este conto será transcrito abaixo, depois de algumas linhas sobre o escritor.       

        RICARDO RAMOS, nasceu em Alagoas, em 1929. Tinha quinze anos quando seu pai, Graciliano Ramos - um dos nossos mais importantes romancistas – mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. No Rio o jovem Ricardo começou a trabalhar com jornalismo, e freqüentava as aulas à noite. Nessa época começou a publicar os seus primeiros contos, em revista e em suplementos literários. Concluiu o curso de Direito, mas não exerceu a advocacia. Nesse tempo trabalhava com publicidade, profissão que o levou a morar em São Paulo, onde morou por mais de trinta anos. Além de publicitário, foi professor de comunicação. Como escritor, nunca se viu livre da responsabilidade de ser filho de Graciliano Ramos. Responsabilidade essa que dá a marca de sua produção literária.

        Prêmios: Ricardo Ramos recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras, conto e romance; o Jaboti, recebeu três vezes; da Câmara Brasileira do Livro, por conto, novela e romance; Guimarães Rosa, prêmio pelo conjunto da obra do contista.
         Comentários sobre a obra do escritor (in Ricardo Ramos, O sobrevivente, São Paulo, Global, 1984) :
       
        JORGE AMADO: “O ficcionista Ricardo Ramos é hoje um dos melhores escritores que possuímos, num país de tantos gênios e tão poucos escritores. Um escritor muito nosso, não apenas pelos temas, mas principalmente pelo sentimento brasileiro”.
       
        TRISTÃO DE ATHAYDE: “O silêncio talvez seja o segredo de seu estímulo. Tanto o silêncio das pessoas e das palavras, como o silêncio das situações. Não há uma nota dissonante. Nem uma frase enfática. Nem um diálogo estridente. Ricardo Ramos se afirma como a demonstração literária autêntica de que a plenitude da palavra é realmente o silêncio”.
       
        PAULO RÓNAI: “Ricardo Ramos sabe ver e fazer a substância dos seres e das ccoisas; daí suas descrições e os seus retratos de gravarem na lembrança do leitor”.
       
       ADONIAS FILHO: “Essencialmente o drama social é tão-somente um prolongamento do drama humano. Em confronto com o sociologismo que dominou o anterior período literário brasileiro, o avanço que Ricardo Ramos empreende é extraordinário”.
       
        HÉLIO PÓLVORA: “Até parece que o ficcionista tem mais de uma vida, é uma testemunha dispersa, onipresente, que observa e opina. Esta capacidade de encarnar almas alheias é objetivo supremo de todos nós, não importa o método, não importa o estilo”.
       
        OBRAS: [CONTOS]: Tempo de espera (1954), Terno de Reis (1957), Os desertos (1961), Rua desfeita (1963), Matar um homem (1970), Circuito fechado (1972), Toada para surdos (1978), Os inventores estão vivos (1980), 10 Contos escolhidos (1983), O sobrevivente (1984), Os amantes iluminados (1988), Os melhores contos de Ricardo Ramos (1998) Estação primeira (1996) Entre a seca e a garoa 1997-8. NOVELAS: Os caminhantes de Santa Luzia (1959), Desculpe a nossa falha (1987), Pelo amor de Adriana (1989), O rapto de Sabino (1992). ROMANCES -Literatura infanto-juvenil: Memória de setembro (1968), As fúrias invisíveis (1974). LIVROS TÉCNICOS: Do reclame à comunicação (1970), Propaganda (1987). MEMÓRIAS: Graciliano: retrato fragmentado (1992).
       
        As obras de Ricardo Ramos foram traduzidas para o inglês, alemão, russo, espanhol e japonês. Os seus trabalhos fazem parte de quatro dezenas de antologias, publicadas no Brasil e no exterior.
       
Graciliano Ramos, pai
de Ricardo Ramos
        Ricardo Ramos morreu na cidade de Santos, no dia 20 de março de 1992; por coincidência, morreu no mesmo dia e no mesmo mês que morreu seu pai, Graciliano Ramos.
 


[ESPAÇO DO CONTO]


VIVA O REI 
(Ricardo Ramos)



         - Leia o jornal – ele me pediu.

        A sua voz destoava, por ingênua e como que desenraizada, do homem ali enfrente: um velho sentado na poltrona, esmaecido contrastando o fundo escuro.

        Corri a primeira página, estranhando com o tom pueril a ecoar ainda em meus ouvidos, e pulando política e economia e variedades, cheguei à notícia que li.

        Pelé vai deixar mesmo o nosso futebol, já assinou contrato com o Cosmos, de Nova Iorque. Um contrato cuja cifra não se sabe, mas que sem dúvida é milionário. O “rei” irá na próxima semana aos Estados Unidos.

        Acabei de ler e olhei para ele, que me fitou subitamente anima com os seus olhos amarelos e se pôs a bater palmas, infantilmente aplaudindo, e rindo, a fazer pequenos sons exclamativos: viva, vivô! Seria isso? Calei-me, baixei a vista, mas encontrei os seus pés no tapete. Iguais aos meus, só que adivinhei mais ossudos. Voltei aos olhos agateados que me exigiram:

        Leia de novo.

        Pelé deixa mesmo o futebol, Cosmos de Nova Iorque, um contrato milionário, o rei vai na próxima semana aos Estados Unidos.

        E parei, sem levantar a cabeça, apenas ouvindo seus vivas e palmas. E evitando os pés nos chinelos, nem quis rever, dei com o meio-corpo mirrado: cinturão, chatelene de ouro, castanho e beje de calça e camisa, tudo se embalando abatido ao compasso daquela euforia. E tão próximo e distanciado, fui lembrar logo a véspera.

        Ele me recebera calmo, seu jeito bonito de ficar, uma figura de antes que perdura, a testa alta e o nariz forte, os cabelos e bigodes alvos, quando num repente o retrato se quebrou. Ele avançou a mão ossuda, que fora tão afável de afagar, e me tomando o braço com força inesperada prendeu a atenção para dizer:

        - Vou fazer noventa anos, meu filho, noventa anos e vou morrer, estou apavorado.

        Ele então soltou meu braço, afrouxando, pendendo, cheiro de fumo e lavanda se retirando, para silencioso pôr-se a chorar. Seus olhos dourados nadando nágua.

        - Leia, leia de novo.

        Pelé deixa nosso futebol, Cosmos de Nova Iorque, rei milionário vai aos Estados Unidos.

        As palmas, as mãos. Transparentes de brancas. Apesar do anel dourado no dedo mínimo, bem pouco, e do geral que ampliava o momento. Viva, vivô! Penoso para mim, airoso para ele. Ou desvinculado, insulado, exaltado. Podemos guardar um instante pela cor? A dele era conservada, perene, milagrosa como rosas no inverno, a cor da juventude, não, a da infância, repontando e resistindo contra os fanados. O róseo, o branco. O marfim, o mármore. Os dele e os meus. Ou os misturados, incessantes, até que o muro nos separe?

        - Leia, leia, leia. Leia outra vez.

        Pelé milionário, Nova Iorque, rei.

        E os aplausos, ele regredindo e adiantando, por ele, por mim, ele com sua pele de criança, eu com minha idade avançada, ele tatibitate e eu engolindo em seco, um não mais chorando, outro chorando enfim, os dois juntos por quê, a vida é isso, e a morte não tem sentido, porque a vida acabou antes, a vida é só a morte adiada, protelada, consumida, que estamos fazendo nós dois aqui, ele e eu, duas pontas soltas com tudo o que importa no meio?

        Ele disse ainda:

        - Leia meu filho, leia.

        E falhou, como velha máquina. Só que não. Seus olhos eram amarelos, agateados, dourados. Em volta, havia tudo o que emoldurava um homem. Avô.




                                                                        *  *  *
       
       

Um comentário:

  1. Pedro,

    Tenho o livro Matar um Homem. O conto que dá nome ao livro é, aliás, em minha opinião, um dos contos mais "verdadeiros" da literatura brasileira. E quero com verdadeiro, dizer que ali se vê a natureza humana desnudada de forma ímpar. Só entenderá quem ler. Para entender a natureza humana melhor que ali, só lendo os filósofos, como Camus, por exemplo.

    Particularmente, Ricardo Ramos faz muito mais o meu estilo do que seu pai, Graciliano. E tinha estilo absolutamente próprio, diga-se. Seria sucesso ainda que não fosse filho de ninguém em especial.

    abço
    Cesar

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Pedro Luso de Carvalho