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20 de set. de 2010

[Crônica] DRUMMOND DE ANDRADE - Boca de Luar

Carlos Drummond de Andrade

                    por  Pedro Luso de Carvalho


      O livro Boca de luar foi lançado em 1984. Reúne as crônicas que Drummond considera não perecíveis.

         Sobre a reação dos escritores mais jovens, diz
Drummond: “Todo o escritor reage contra os mais velhos, mesmo que o não perceba, ainda que os admire. E se os admira, mais feroz é a reação, em que se casam amor e impaciência, ternura e tédio pela obra cristalizada: ácida compensação da pena de admirar”.

         (In Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1973, pp. 845-848. (trecho do art. Do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1 set. 1946.)
       
          Segue a crônica Boca de luar dá o título ao livro de Carlos Drummond de Andrade, publicado pelo Círculo do Livro, São Paulo, 198?, pp. 49-51:

                                             
                                          [ESPAÇO DA CRÔNICA]



                                               BOCA DE LUAR
                                                                                                        (Drummond)


        - Você tem boca de luar, disse o rapaz para a namorada, e a namorada riu, perguntou ao rapaz que espécie de boca é essa, o rapaz respondeu que é uma boca toda enluarada, de dentes muito alvos e leitosos, entende? Ela não entendeu bem e tornou a perguntar, desta vez que lua correspondia à sua boca, se era crescente, minguante, cheia ou nova. Ao que o rapaz disse que minguante não podia ser, nem crescente, nem nova só podia ser lua cheia, uai. Aí a moça disse que mineiro tem cada uma, onde é que se viu boca de lua cheia, até parece boca cheia de lua, uma bobice. O rapaz não gostou de ser chamada de bobice a sua invenção, exclamou meio espinhado que boca de luar, mesmo sendo de luar de lua cheia, é completamente diferente – insistiu: com-ple-ta-men-te – de boca cheia de lua; é uma imagem poética e daí isso não tem nada que ver com mineiro, ele até nem era propriamente mineiro, nasceu em Minas por acaso, seu pai era juiz de direito numa comarca de lá, mas viera do Rio Grande do Norte, depois o pai deixou a magistratura e se mudou para São Paulo, onde ele passou a infância, mudando-se finalmente para o Rio com a família. Ah!, disse a moça, você ficou zangado comigo, diga, ficouzinho? bobo, te chamo de bobo como te chamo meu bem, fica nervosinho não, eu agora estou sentindo que o que você falou é uma graça, boca de luar é legal, olha aqui, vou te dar um beijo superluar, você quer? Ele ensaiou um cara de quem não faz questão de ser beijado, mas os lábios da moça estavam já assumindo a forma de beijo, avançavam para ele num movimento que parecia comandar e concentrar todo o corpo, como resistir? Pois resistiu, se bem que com intenção de ceder: daí a pouco. Não ficava bem desmanchar a zanga assim tão depressa, ela ia ter a impressão de que ele nem sabia ficar com raiva, a simples oferta de beijo o amolecia, e que seria do casamento deles, se houvesse casamento? Não é que pensasse em casar com a moça, longe disso, não pensava em casar com ela nem com moça nenhuma nos próximos dez anos, mas é bom manter a linha de durão mesmo sem perspectiva de futura manutenção de autoridade. É da lei não escrita, homem ficar emburrado e não fazer por menos. Então é assim? Falou baixinho a moça, você não quer o meu beijo oferecido de coração, pois não vai ter mais nenhum nem agora nem depois de amanhã nem nunca, ouviu, seu bolha? E os lábios recuaram tanto que foi como se despregassem do rosto ali diante do moço zangado e fugissem para longe, para onde nem sequer fossem vistos, e escusa de procurar, porque boca de boca desprezada some na nuvem mais escura, por trás daquela serra para os lados de Teresópolis. E eu vou sofrer com isso? o moço não disse mas falou consigo mesmo, que bem me importa se ela não quer mais me beijar, eu beijo outras, beijo a prima dela, beijo milhões e acabou-se. Mas a moça, que despachara os lábios para o sem-fim, continuava diante dele, muito saborosa e séria, séria e saborosa, aquela pele fina e dourada, aqueles olhões, aquele busto, aquilo tudo de primeiríssima beleza, sem falar na boca ausente mas presente, sabe como é? Ele não sabia , mas a vontade de provar o beijo reapareceu depois que o beijo fora recusado para todo o sempre, e o rapaz avançou o braço direito para pegar docemente no queixo da moça, quem disse que o queixo cedeu? Ele fez um gesto mais positivo, tentando segurar o ombro da moça, o ombro esquivou-se ao toque, embora ela não recuasse. Continuavam próximos um do outro, a uma distância infinita do entendimento. Forçar o beijo seria besteira, ela cerraria os lábios, a boca de luar não se abriria na aceitação úmida da sua. E que gosto pode ter beijo roubado, se até o que não é roubado costuma ser insípido quando as duas partes não se movem pelo mesmo impulso de doação e devoração? A moça visivelmente esperava o ataque, ele visivelmente se proibia de atacar, isso durou um tempão, com o beijo parado em potencial entre os poucos centímetros de uma boca a outra, eis senão quando – ui! - uma formiga, não mais que uma formiguinha, vinda de não se sabe que subterrâneo preparado para expedí-la, em momentos que tais, começou a subir ziguezagueando pelo pescoço da moça, ela deu um grito, ele se precipitou para caçar a formiguinha, os rostos tocaram-se, os lábios também, e o beijo desabrochou, flor na ponta de duas hastes conjugadas, superlunar e inevitável, beijo fluido e forte, resultante da incompreendida imagem poética ou da formiguinha encomendada, quem sabe, pelo rapaz? ou pela moça?

                                                           *  *  *


Leia, também, de Drummond, Soneto da Perdida Esperança
                                                            
                                                         


2 comentários:

  1. Que delícia de crônica!

    Namoro é bem assim. A gente discute por nada. E faz as pazes por ainda menos.

    Quando quero ler algo sobre o amor, corro para o Drummond. Interessante como são textos universais, não tem como não se identificar com algum. Carlos Drummond, Gullar, Vinícius de Moraes... Conseguem traduzir sentimento em palavras. E de que bela forma!

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  2. Seria tão legal que a gente pudesse copiar e colar! Afinal, ninguém vai roubar os direitos autorais do grande poeta Carlos Drummond!!!

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Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho