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30 de ago. de 2011

[Conto] JORGE LUIS BORGES / O Disco




                por Pedro Luso de Carvalho



        Jorge Luis Borges, resgistrado com o nome de Jorge Francisco Isidoro Luis Borges, nasceu na capital da Argentina, Buenos Aires, em 24 de agosto de 1899, e faleceu em Genebra, Suíça, em 14 de junho de 1986, aos 87 anos incompletos. Dono de uma prosa lacônica, mas atordoante e inemitável, foi contista, poeta, fabulista, ensaísta e mitógrafo. 

        Borges escreveu uma extensa obra, abragendo contos, não ficção e antologias. Seus pequenos ensaios, diz André Maurois, bastam para afirmá-lo “grande”, pelo brilho duma inteligência impressionante, a riqueza de invenção e o estilo cerrado, quase matemático. Diz mais: “Aparenta-se com Kafka, Poe, às vezes com Wells, sempre Valéry pela brusca projeção de seus paradoxos dentro do que chamaram “sua metafísica privada”. (in de Aragon a Montherlant, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1967, p. 99.) 

        A biógrafa de Borges, María Esther Vázquez, afirma que , “A partir de 1933 Borges encontrou, quase sem perceber, seu verdadeiro destino na literatura: o conto, gênero que lhe daria fama mundial”. (in Jorge Luis Borges – Esplendor e derrota – Uma biografia, Rio de Janeiro: Record, 1966, p. 135.)
     
        Podemos constatar a genialidade de Jorge Luis Borges na sua narrativa curta de “O disco”, um dos treze contos que integram a sua última coletânea de contos, in O livro de areia. Tradução de Davi Arrigucci Jr., Rio de Janeiro: Coampanhia das Letras, 2009. p. 98-99. Segue, pois, O disco, excelente conto de Borges:


    [ESPAÇO DO CONTO]
                                                    
                                     
                                O  DISCO
                                                                   (J. L. Borges)

       
        Sou lenhador. O nome não importa. A choça em que nasci e na qual logo hei de morrer fica à beira do bosque. Do bosque dizem que se estende até o mar que rodeia toda a terra e que nele existem casas de madeira iguais à minha. Tampouco vi o outro lado do bosque. Meu irmão mais velho, quando éramos pequenos, me fez jurar que nós dois derrubaríamos todo o bosque até não restar uma única árvore. Meu irmão morreu e agora procuro e continuarei procurando outra coisa. No rumo do poente corre um riacho em que sei pescar com a mão. No bosque há lobos, mas os lobos não me amedrontam e meu machado nunca me foi infiel. Não fiz o cálculo de meus anos. Sei que são muitos. Meus olhos já não vêem. Na aldeia, aonde já não vou porque me perderia, tenho fama de avaro, mas que pode ter amealhado um lenhador do bosque?

        Fecho a porta de minha casa com uma pedra para que a neve não entre. Uma tarde ouvi passos trabalhosos e depois uma batida. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto e velho, envolto numa manta puída. Uma cicatriz atravessava seu rosto. Os anos pareciam haver dado a ele mais autoridade que fraqueza, mas notei que lhe custava andar sem o apoio do bastão. Trocamos umas palavras que não lembro. Disse afinal:

        - Não tenho casa e durmo onde posso. Percorri toda a Saxônia.

        Aquelas palavras convinham à velhice dele. Meu pai sempre falava da Saxônia; agora as pessoas dizem Inglaterra.

        Eu tinha pão e peixe. Não falamos durante o jantar. Começou a chover. Com uns couros armei uma cama para ele no chão de terra, onde meu irmão morreu. Ao chegar a noite, dormimos.

        O dia clareava quando saímos de casa. A chuva cessara e a terra estava coberta de neve recente. Deixou cair o bastão e ordenou-me que o erguesse.

        – Por que devo te obedecer? - disse-lhe.

        – Porque sou um rei – respondeu.

        Julguei-o um louco. Apanhei o bastão e lhe dei.

        Falou uma voz diferente.

        – Sou o rei dos Secgens. Muitas vezes, levei-os à vitória na dura batalha, mas na hora marcada pelo destino perdi meu reino. Meu nome é Isern e sou da estirpe de Odin.

        – Não venero Odin – respondi. - Venero Cristo.

        Como se não me ouvisse, continuou:

        – Ando pelos caminhos do desterro, mas ainda sou rei porque tenho o disco. Queres vê-lo?

        Abriu a palma da mão, que era ossuda. Não havia nada na mão. Foi então que percebi que sempre a mantinha fechada.

        Olhando-me fixamente, disse:

        – Podes tocá-lo.

        Já com algum receio pus a ponta dos dedos sobre a palma. Senti uma coisa fria e vi um brilho. A mão fechou-se bruscamente. Eu não disse nada. O outro continuou com paciência, como se falasse com um menino:

       – É o disco de Odin. Tem um único lado. Na terra não existe outra coisa que tenha um só lado. Enquanto estiver em minha mão, serei rei.

        – É de ouro? - disse a ele.

        – Não sei. É o disco de Odin e tem um só lado.

        Então senti a cobiça de possuir o disco. Se fosse meu, poderia vendê-lo por uma barra de ouro e seria um rei.

        Disse ao vagabundo que ainda odeio:

       – Na choça tenho um cofre de moedas escondido. São de ouro e brilham como o machado. Se me deres o disco de Odin, eu te darei o cofre.

        Disse teimosamente:

        – Não quero.

        – Então – disse eu – podes prosseguir teu caminho.

        Deu-me as costas. Uma machadada na nuca bastou e sobrou para que vacilasse e caísse, mas, no cair, abriu a mão e vi o brilho no ar. Marquei bem o lugar com o machado e arrastei o morto até o riacho, que estava muito cheio. Atirei-o lá.

        Ao voltar para casa, procurei o disco. Não o encontrei. Faz anos que continuo à sua procura.



                                                                 * * * * *

6 comentários:

  1. Pedro, meu amigo, adoro os contos de jorge Luiz Borges.
    Tenho uma coletânea deles aqui, que fui fazendo por conta própria e estão lado-a-lado com Edgar Allan Poe.
    Abraços

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  2. Anônimo15:54

    Olá, estava a procura de um conto dele e encontrei. Gostei muito! Graças a você vou comprar um livro dele! Obrigada!

    Ariane Borges

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  3. Anônimo11:09

    Olá!
    Estou a procura de um conto de Jorge Luis que fala sobre um rei que queria mapear seu reino e para tal contrata um cartógrafo.
    A história é mais ou menos assim.
    Alguém conhece esse conto?
    Muito obrigado,

    Miguel Rivas

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    1. Miguel,
      Dei uma rápida olhada nos índices dos livros de Borges, em minha biblioteca, folhei páginas de alguns deles, e não encontrei esse conto ao qual você faz referência.
      Um abraço.

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  4. Anônimo08:17

    Dá uma olhada nesse aqui:
    http://contramundumcritica.blogspot.com.br/2010/03/jorge-luis-borges-sobre-o-rigor-na.html

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    1. Anônimo08:54

      qual sua interpretação a respeito do conto, pedro ?

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muito obrigado pela sua leitura e comentário.
Meu abraço a todos os amigos.

Pedro Luso de Carvalho